A ciência gordurosa - JOÃO PEREIRA COUTINHO
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A ciência gordurosa - JOÃO PEREIRA COUTINHO


FOLHA DE SP - 24/06

Hoje, não se come mais para viver. Come-se para viver até aos cem --uma importante revolução civilizacional


Vou ao supermercado e fico pasmo com os produtos nas prateleiras. Não falo da quantidade de iogurtes, bolachas, pastas dentifrícias ou papel higiênico que me transformam no famoso burro de Buridan --o asno do paradoxo filosófico que morre de fome por não saber qual dos pedaços de feno escolher. De fato, tanta variedade paralisa qualquer um.

Falo de outro fenômeno igualmente agônico: a quantidade de produtos alimentares que parecem diretamente saídos de um consultório médico.

Um iogurte não é um iogurte, com um determinado sabor e uma determinada textura. É quase um remédio de farmácia que promete diminuir o colesterol e controlar 50 outros indicadores orgânicos igualmente importantes para a saúde do sujeito.

E quem fala em iogurtes, fala em sucos (com seu cortejo de vitaminas), batatas fritas (com reduções heroicas na quantidade de sal) e até chocolates (alguns deles prometem melhorar o fluxo arterial). Como se chegou a isto?

Verdade: com a "morte de Deus" e o fim de uma vida transcendente, cuidar do corpo transformou-se na única religião dos homens modernos. De tal forma que nem a gastronomia está a salvo: antes do prazer ou da mera fome, está primeiro a saúde. Hoje, não se come mais para viver. Come-se para viver até aos cem --uma importante revolução civilizacional.

Honestamente, nem sei por que motivo não se abrem restaurantes em hospitais, com refeições cozinhadas por médicos e servidas por enfermeiros. No final, o cliente faria análises ao sangue e só pagaria a conta se tivesse o número certo de triglicerídeos.

O problema é que nem no hospital o cliente estaria a salvo. Desde logo porque é cada vez mais difícil saber o que comer: existem estudos, publicados a um ritmo demencial, que dizem uma coisa e o seu contrário. Às vezes, na mesma semana --ou até no mesmo dia.

A carne vermelha é má, defendem uns. A carne vermelha é ótima, garantem outros. Sobre os laticínios, há opiniões para todos os gostos: são puro veneno; são simplesmente insubstituíveis. E até as gorduras, que deveriam ser um inimigo consensual, parece que não são tão inimigas assim.

A revista "Time", aliás, dedicou matéria especial ao fenômeno: durante décadas, o país declarou guerra às gorduras. Que o mesmo é dizer: incluiu no Index da dieta nacional a carne vermelha, os ovos, os laticínios, a manteiga. A mensagem era simples: conservar um coração saudável implicava dizer adeus a todo esse lixo. Conclusão?

Os americanos foram dizendo adeus ao lixo, optando por aves, leite magro ou cereais. Infelizmente, a mudança na dieta não os tornou mais saudáveis. Pelo contrário: o país está mais doente do que nunca.

A diabete de tipo 2 aumentou 166% entre 1980 e 2012. Os problemas do coração continuam no topo da lista --e das mortes. E, sobre a obesidade, estamos conversados: falar dos Estados Unidos é imaginar uma nação disforme de glutões disformes. Explicações?

Não, a gordura não é o papão que se imaginava, explica a revista. Não entro em termos técnicos, até porque eles são demasiado gordurosos para mim. Mas parece que a gordura do peixe e dos vegetais é boa para o coração. E até a gordura "suspeita" de um bom filé (cozinhado com manteiga, claro) tem vantagens respeitáveis na limpeza do mau colesterol.

Os verdadeiros inimigos, hoje, são os carboidratos presentes nos açúcares, nos doces, nos farináceos. Isso, claro, enquanto não surgir um novo estudo a defender precisamente o contrário --ou, pelo menos, a colocar as coisas na suas devidas proporções.

E eu? Que fazer perante essa selva de alarmes contraditórios?

Nada. Rigorosamente nada. Perdido no supermercado, vou retirando das prateleiras os alimentos que a ciência aprova e desaprova nos dias pares e ímpares, respectivamente.

E confesso que as gorduras continuam a ter espaço generoso na minha dieta animalesca. Não que eu me orgulhe disso, cuidado. Mas enquanto não existirem estudos definitivos sobre o assunto, prefiro seguir as recomendações da minha ilustre dra. Gula.




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