Por Marcelo Semer, no blog Sem Juízo:Uma das grandes sandices dos saudosistas da ditadura, ou daqueles que evocam a nostalgia do que jamais conheceram, é pregar por “um golpe militar contra a corrupção”.
Nessas toscas, porém não ingênuas, chamadas para uma marcha com Deus, família, liberdade e canhões, a ideia se repete com uma irritante constância.
Mas um golpe militar jamais será contra a corrução. O golpe é a própria corrupção.
Não bastasse o fato de corromper a ideia em si do estado de direito (que cede ao estágio da força bruta), e ser, portanto, uma violência contra a democracia, a ditadura por essência se opõe aos princípios mais básicos do combate a qualquer corrupção: transparência e igualdade.
Nada disso existe quando o poder é absoluto.
Não passa de um mito, construído pelo marketing da mentira e pela estratégia da ocultação, a ideia de que não houve corrupção na ditadura.
Pequenas notícias, grandes fortunas.
Quantos não foram os empreendedores pró-militares que enriqueceram, enquanto o país se endividava brutalmente?
O que não havia na ditadura era liberdade da imprensa para divulgar, nem a de órgãos de controle para averiguar ilícitos.
A ideia de república pressupõe o controle do poder; a ditadura, ao revés, se baseia no uso do poder como controle.
Reportagem recente do jornal O Globo -insuspeito no assunto, porque foi um dos mais persistentes no apoio aos militares- aponta que a Comissão Geral de Investigação criada pela ditadura arquivou inúmeras denúncias contra amigos do regime ao mesmo tempo em que se detinha em vasculhar a vida de seus opositores.
Enquanto arquivos pessoais de Leonel Brizola e João Goulart eram devassados (sem sucesso) pelos investigadores atrelados ao governo, denúncias contra José Sarney e Antônio Carlos Magalhães, por exemplo, foram simplesmente arquivadas sem qualquer tipo de apuração.
Os amigos do poder tinham mais que direitos; os inimigos, bem menos do que a lei.
Pode-se encontrar violência, privilégios e obediência pelo medo nos desvãos da nossa ditadura.
Mas não uma polícia isenta, um Ministério Público com autonomia ou a plena independência judicial.
A promiscuidade entre empresários e membros do regime militar é, aliás, um dos pontos que tem chamado a atenção da Comissão Nacional da Verdade recentemente. Já foram levantados vários apontamentos de visitas de representantes de entidades de industriais a locais de repressão.
O documentário Cidadão Boilesen (2009, direção Chaim Litewsky) aborda o tema com farto material histórico, relatando o subsídio empresarial para a manutenção de centros de tortura –uma espécie de parceria público privada para uma operação ilegal, ao mesmo tempo no coração e à margem do sistema.
Alguns aderiram à promiscuidade como forma de não serem alijados de licitações ou grandes contratos; outros justamente para poder se aproveitar das oportunidades que se abriam com essas ligações escusas -o documentário avoluma dados sobre as conexões entre o grupo do executivo e a Petrobrás.
Com a aproximação do aniversário de cinquenta anos do golpe militar, que mergulhou o país em mais de duas décadas de sombras, proliferam-se manifestações nostálgicas, estimuladas pelo negacionismo de historiadores reacionários.
A ditadura, de fato, tinha menos paciência com rebeliões de políticos aliados. E nenhuma tolerância contra os inimigos do regime.
Mas daí não resulta qualquer mérito. Ao revés, a intolerância do poder foi devastadora.
Muitas famílias acabaram destroçadas. E as marchas que vieram a partir do golpe não desaguaram nem em Deus nem nas liberdades. Apenas espalharam violência.
Há quem esteja predestinado a repetir a história como farsa. Mas há muita gente ainda de olho na tragédia.
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