A DESGRAÇA DA DICOTOMIA: PARE O PEDESTAL QUE EU QUERO DESCER
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A DESGRAÇA DA DICOTOMIA: PARE O PEDESTAL QUE EU QUERO DESCER


“Eu sabia o bastante para saber que a única coisa esperada de mim era que eu não me desgraçasse” (The Blind Assassin, Margaret Atwood, 2000, minha tradução).

Parece que essa frase do romance que estou lendo atualmente vem a calhar: o que se espera de nós, mulheres, é que, além de estarmos sempre belas e jovens, sejamos respeitáveis. Não podemos nos desgraçar. Prum homem se desgraçar é mais complicado. Ele precisa matar ou estuprar alguém ou, no mundo homofóbico em que vivemos, ser pego transando com outro homem. Pra nós mulheres é mais fácil: bastar usar um vestido curto na faculdade onde se estuda, num dia em que os alunos, entediados, farão qualquer coisa pra gazetear aula. Ou executar uma dança insinuante e deixar sua calcinha à mostra, ainda mais se você tiver uma profissão “respeitável”, professora. Ou senão transar com o próprio namorado e permitir que ele filme o ato. Quando vocês terminarem, ele, pra se vingar, divulgará as imagens na internet. Ele será visto com admiração pelos amigos, mas você, por ter tido o azar de nascer com uma vagina, provavelmente vai precisar mudar de nome, de cidade, e de profissão. Chato, né?
Quem se chocou com o episódio ocorrido na Uniban precisa refrescar a memória lendo esta matéria de mais de três anos atrás. Em maio de 2006 não foi um vestido que desgraçou a vida de uma moça, Francine, também de 20 anos, mesma idade de Geyse, a aluna da Uniban. A causa da desgraça foi terem aparecido no orkut fotos pornôs de Francine fazendo sexo com dois homens. Eis um trecho da matéria de 2006. Não dá uma incrível sensação de dejá-vu?
Francine foi à faculdade, a 30 quilômetros de Pompéia. A Fundação de Ensino Eurípides Soares da Rocha, a Univem, fica em Marília, pólo de quase 200 mil habitantes que recebe estudantes de toda a região centro-oeste de São Paulo. Antes de entrar, Rud de Moura, aluno de Administração que embarcara no mesmo ônibus, avisou: 'Seu nome está nos quatro cantos da faculdade. Você sabe que o ser humano é complicado. Se houver algum problema, conta comigo'. Francine respondeu que não devia nada a ninguém e se dirigiu à sala. Nas duas primeiras aulas, nada aconteceu. No intervalo, pouco depois das 21 horas, Francine não conseguiu sair. Cerca de 300 alunos aglomeravam-se pelos corredores. O professor Otávio Custódio de Lima bloqueou a porta para que não invadissem. Os universitários, boa parte deles do curso de Direito, queriam ver 'a vagaba da internet', xingá-la de 'prostituta', avisar que eram 'os próximos da fila', atirar preservativos, empunhar cartazes de 'tire aqui a sua senha'.
[...] Chamaram a polícia. 'Não saia de cabeça baixa. Você não deve nada a ninguém', disse Rud. Ele acompanhou Francine até a delegacia e avisou a mãe da estudante. Ela conseguiu deixar a sala e vencer as centenas de metros que a separavam do lado externo do prédio graças a bombas de gás pimenta atiradas pelos policiais para abrir espaço. 'Eu me senti pequenininha. Só via as bocas mexendo e mexendo. Não ouvia. Só queria sair dali', diz. Foi o segundo linchamento moral. Uma estudante disse a ÉPOCA, acreditando que assim minimizava a violência: 'Ela não seria linchada, ninguém ia agredi-la fisicamente. Se a polícia não chegasse, no máximo ficariam passando a mão na bunda dela'”.
Ah bom! Legal saber que Francine (ou Geyse) não seria literalmente apedrejada em praça pública. Só a apalpariam! E isso toda mulher já está acostumada!
A reportagem da Época de 2006 é boa, mas deixa um gosto extremamente moralista. Provavelmente porque o caso todo foi um desfile de moralismo, mas também porque a família de Francine (daquele tipo “tradicional” de cidadezinha do interior) é um poço de conservadorismo. É o pai que não consegue mais olhar pra filha após ver aquelas fotos; é a mãe que nunca tinha visto fotos assim antes; é a declaração que ela dá à jornalista: “Eu sempre falei para a Francine tomar muito cuidado para não cair na boca do povo, porque o dia que cair ninguém mais esquece”. Sabe, aquele lenga-lenga que o mais importante na vida de uma mulher é não se desgraçar. Esse patrulhamento conta com a eterna vigilância de outras mulheres, como mostra um outro pedaço da matéria:
'Eu mesma passei as fotos para várias pessoas. Ela é uma safada—e com aquela cara de santa. Eu não transaria com dois caras, não acho certo. Um homem até pode escorregar, uma mulher não', diz uma garota de Pompéia, de 21 anos, nível universitário. 'Agora está posando de vítima. Uma pessoa normal, que tem sua dignidade, não faz o que ela fez. A única solução para ela é sair da cidade.'
A colega de Francine a acha uma puta, apesar da cara de santa, e cabe a essa colega desmascará-la, mostrar o que Francine realmente é. A única novidade nesse caso de Pompeia é que um dos dois homens envolvidos nas fotos também foi prejudicado: perdeu o emprego. Isso porque ele era casado, e por ser filho de um vereador da cidade. Não por ter feito sexo, que sexo é uma atividade saudável, natural e prazerosa dos seres humanos—bom, ao menos dos seres humanos do sexo masculino.
Não sei o que aconteceu depois. Não encontrei outras notícias falando do caso, apenas esta, relatando que as fotos eram de fato uma montagem. O mais irônico é que alunos da Univem procuraram a diretoria perguntando se Francine não seria expulsa por ter manchado a imagem da faculdade. Ela que manchou, entende?! Espero que a Univem tenha aberto espaço para discussão entre os alunos, para que eles aprendessem que aquele tipo de comportamento que exibiram é simplesmente inaceitável.
Mas, claro, a pergunta que não quer calar é: faz alguma diferença se aquelas fotos eram ou não uma montagem (ou o tamanho do vestido de Geyse?)? Para a consciência de Francine e sua família, faz. Mas para a reação do pessoal de fora, faz? Uma mulher não pode transar com dois homens? É estranho que não possa ser tolerado justo aquilo que rapazes adolescentes (numa idade não muito distante da maioria dos universitários) veem em filmes pornôs, que eles seguem como cartilha e que geralmente é sua única fonte de educação sexual. Ou melhor, talvez até possa ser tolerado, mas só se for feito por putas, não por mulheres de família. Mulheres dignas, honestas, que se dão ao respeito, não transam com dois homens. Aliás, nem transam. Só para fins reprodutivos, para gerar o ápice da criação: um herdeiro homem.
Pô, é tão tênue assim a linha que separa essa nossa dicotomia feminina entre santas e putas? Basta usar um vestidinho ou ser fotografada transando pra cair na boca do povo? Homens não têm que escolher se são santos ou putos. Eles têm a liberdade sexual para transarem com quem quiserem (desde que seja do sexo feminino), e isso só será avaliado de forma positiva. Quanto mais parceiras, melhor.
Mas, e nós? Somos santas ou putas? Nem uma coisa nem outra, óbvio. Somos mulheres, que querem exercer sua sexualidade sem julgamentos, que gostam de sexo, que exigem os mesmos padrões de liberdade sexual que os homens têm. Até porque pros misóginos, mulher é tudo vaca mesmo (a menos que sejam as mães deles, aí são santas, pois pariram um ser tão iluminado). Mas também é repulsivo que sejamos colocadas num pedestal, porque esse pedestal tem preço. Pra ser santa, temos que ser mães ou virgens, e a gente deve poder se dar ao luxo de decidir não ser nem mãe nem virgem. E é facílimo cair desse pedestal. E quanto maior a altura, maior a queda.
Eu dispenso o pedestal. Dispenso estar sob constante avaliação. Eu quero que se espere um monte de realizações das meninas, não apenas que elas não se desgracem. Por sinal, essa desgraça não é minha, nem delas, nem nossa. É de quem insiste numa dicotomia estúpida, uma dicotomia que nunca teve razão de ser, mas que tem menos ainda no século 21.




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