Por Giorgio Trucchi, de Tegucigalpa, no sítio Opera Mundi:
Durante o seminário internacional “A Situação Política da América Central e a Situação dos Jornalistas”, realizado em Tegucigalpa no último mês de outubro, que contou com a presença de jornalistas vindos de toda a América Latina, a coordenadora de notícias da Radio Progresso, Karla Rivas, apresentou um relatório no qual apontava a grande concentração de meios de comunicação que existe em Honduras.
Segundo ela, o modelo neoliberal promovido no país a partir da década de 90, assim como a criação da Lei do Marco Regulatório do Setor de Telecomunicações (1995), fomentaram a ideia da comunicação como mercadoria e não como um “direito humano que possibilite a obtenção de outros direitos”, cujo exercício livre é a base da democracia e “o mecanismo indispensável para a formação da opinião pública e a tomada de decisões da maneira informada”, relata Rivas.
Da mesma forma, a consultora independente de telecomunicações Norma Flores evidenciou em seu artigo “Democratização ou Concentração das Telecomunicações em Honduras?”, como esse mesmo modelo neoliberal foi desvirtuando o significado de “espectro eletromagnético”, transformando-o em algo que, apesar de ser um recurso nacional de propriedade do povo, pode ser adquirido somente pelas pessoas que possuem grandes recursos econômicos.
Essa situação gerou uma crescente concentração de meios de comunicação em muito poucas mãos, tanto que se calcula que nada menos que 80% das frequências de rádio e televisão e da imprensa escrita estejam controladas por quatro grupos maioritários. Um fato que ficou dramaticamente evidente durante o golpe que, em 2009, derrubou o presidente Manuel Zelaya, quando teve início uma repressão e perseguição ferozes a meios de comunicação e jornalistas que criticavam a ruptura da ordem constitucional no país.
Golpe e desinformação“Depois do golpe, ficou evidente como o oligopólio midiático em Honduras produziu um cerco da desinformação sobre a população, que deu origem a um verdadeiro terrorismo midiático, suplantando a realidade que estava acontecendo. Enquanto os militares tomavam a Casa Presidencial e as pessoas protestavam e sofriam a repressão nas ruas, a mídia transmitia desenhos animados e velhos jogos de futebol”, disse Félix Molina, diretor de Alter Eco (Alternativas de Comunicação) a Opera Mundi.
Poucas semanas depois do golpe, chegou a Honduras uma missão tripartite formada por delegados da AMARC-ALC (Associação Mundial de Rádios Comunitárias – América Latina e Caribe), ALOP (Associação Latino-Americana de Organizações de Promoção de Desenvolvimento) e a Mesa de Articulação das Associações Nacionais e Redes Latino-Americanas de ONGs da América Latina e do Caribe, cujo objetivo era investigar a situação dos meios de comunicação, rádios comunitárias e organizações sociais do país.
Em seu relatório, Maria Pia Matta, então presidenta da AMARC-ALC, mostrou que o alto nível de concentração da mídia em Honduras era um fator determinante no cerco informativo que o governo de fato tinha espalhado sobre suas ações repressivas. “O conluio entre a grande imprensa, representantes de grandes empresários e as autoridades de fato foi elemento-chave da censura informativa”, afirmou Matta.
Da mesma forma, Frank La Rue, relator especial da ONU (Organização das Nações Unidas) para o direito à liberdade de expressão e opinião, reportou que as autoridades estavam violando o direito de comunicação e de liberdade de expressão dos hondurenhos e das hondurenhas. “A situação é agravada pela cumplicidade dos grandes meios de comunicação que atuam em conluio com os interesses do governo ilegítimo”, ressaltou La Rue durante sua permanência no país centro-americano.
Aprofundando sua denúncia, o relator especial concluiu que “em Honduras não existe liberdade de expressão nem para comentar os fatos de cada dia, nem para criticar as autoridades de fato ou condenar o golpe de Estado.”
Meios comunitáriosNaqueles dias de violência e de forte divisão da sociedade hondurenha, ficou evidente a necessidade improrrogável de um processo sério e real de democratização do espectro eletromagnético. O próprio La Rue acredita em redefinir “o interesse social do uso das frequências de telecomunicações e sua forma de distribuição, para dar aos cidadãos participação e acesso à informação amplos”. Também assegurou que “as frequências comunitárias ou as públicas devem ter os mesmo direitos e obrigações que as comerciais, razão pela qual não se deve presumir que necessariamente sejam de baixa potência e pouco alcance”, disse.
Por sua vez, a Comissão da Verdade e Reconciliação, governamental, recomendou ao Estado, em seu relatório final, “garantir a equidade no acesso ao espectro eletromagnético”, facilitando que os povos indígenas, mulheres e outros grupos sociais “disponham de meios próprios de comunicação, que lhes garantam seu direito a expressar opiniões e a ser parte do processo de tomada de decisões públicas.”
A exigência de uma democratização dos meios de comunicação e de uma comunicação administrada e gerenciada pelas próprias comunidades aumentou depois do golpe. Isso está refletido de forma contundente nos relatórios da CIDH (Comissão Interamericana de Direitos Humanos), do EPU (Exame Periódico Universal) e do Relatório Especial para a Liberdade de Expressão da OEA (Organização dos Estados Americanos), mas também por parte das vítimas que deram seu testemunho à Comissão da Verdade Alternativa.
Segundo Molina, a falta de democratização do direito à comunicação em Honduras está diretamente ligada à falta de democracia política que impôs o bipartidarismo ao país durante os últimos 130 anos. “Se somamos este ancoradouro histórico à nefasta experiência que vivemos em 2009, podemos entender o motivo do interesse crescente da sociedade em novos projetos de telecomunicações”, explicou.
Depois do fracasso da proposta do presidente Porfirio Lobo, que visava reformar a Lei do Marco Regulatório do Setor de Telecomunicações, baseando-se inicialmente em um projeto apresentado pela organização C-Libre (Comitê Pela Livre Expressão), e que incluía o conceito de serviços comunitários e assegurava a atribuição equitativa e justa do espectro eletromagnético, o mandatário hondurenho encarregou as autoridades da CONATEL (Comissão Nacional de Telecomunicações) de buscar outra solução.
“O presidente tentou acordar este projeto com o número mais amplo possível de organizações sociais, mas enfrentou a firme oposição e a chantagem das grandes corporações de telecomunicações. Foi assim que, depois de um diálogo com várias organizações sociais, decidimos criar um Regulamente Especial para Meios Comunitários”, explica Mauricio Aguilar, comissário da CONATEL.
Foi nesse contexto que, em junho de 2013, foi criada a AMCH (Associação de Meios Comunitários de Honduras). Molina explicou que foi uma conversa muito ampla da qual participaram várias organizações e que levou a três conclusões: constituir uma associação de meios comunitários para animar as organizações a solicitar suas frequências, procurar o reconhecimento do Estado para as frequências que estão transmitindo de “forma livre”, e escrever uma normativa para os meios comunitários, que resultou em várias garantias e requisitos fáceis de cumprir.
O regulamento, então, além de ter status de lei, permitiu à CONATEL chamar as organizações sociais e as comunidades a solicitar uma nova frequência de tipo comunitário ou a pedir o reconhecimento por parte do Estado das frequências que já estavam sendo usadas. “Comprimimos o espectro eletromagnético e geramos novas frequências, dividindo-as entre comunitárias e comerciais. As comerciais são leiloadas, enquanto as comunitárias são entregues através de um procedimento legal e técnico simples, ágil, gratuito, mas, ao mesmo tempo, juridicamente muito sólido”, disse o comissário da CONATEL.
Além disso, ele argumentou que se tratam de frequências primárias. “O velho conceito de que era necessário dar às comunidades “rádios vagabundos” de potência muito baixa ficou para trás”, assegurou.
Até o momento, das 45 frequências comunitárias disponíveis, que representam 33% das novas que foram geradas com o regulamento, oito já foram concedidas, enquanto outras 35 estão em processo. Entre outras, encontram-se os pedidos apresentados pelo COFADEH (Comitê de Familiares de Detidos Desaparecidos em Honduras), pela CNTC (Central Nacional de Trabalhadores do Campo), pela radio La Voz de Zacate Grande, pela rádio Orquídea, do MCA (Movimento Camponês do Aguán), pelo MUCA (Movimento Unificado Camponês do Agúan) e a RDS (Rede de Desenvolvimento Sustentável).
A iminente troca de cargos institucionais que acontecerá depois do dia 27 de janeiro, data na qual o presidente eleito em 24 de novembro, Juan Orlando Hernández, assumirá, parece que não afetará o processo recém começado. “Já nos reunimos com o comissário Aguilar e eles nos garantiu que o processo não para, e que será feito todo o possível para entregar as frequências disponíveis”, disse Carlos Enamorado, diretor da rádio Revelación de Curarén, cuja frequência foi outorgada oficialmente em agosto.
O entusiasmo gerado pela iniciativa contagiou organizações, comunidades e grupos sociais em todo o território nacional. “Com o reconhecimento de parte das autoridades de telecomunicações, as comunidades estão se organizando e montando suas rádios. É algo que ninguém pode parar”, disse Enamorado.
Redes de rádios comunitáriasPara Félix Molina, o que está promovendo, com esse novo impulso para o reconhecimento das rádios comunitárias, é a capacidade de suprir três déficits históricos da população hondurenha. "O primeiro é o auto reflexo das comunidades no cenário midiático, isto é, uma sociedade menosprezada por tantos anos, que goza agora da felicidade de se ouvir em seus próprios meios. Além disso, se consegue resolver, em parte, a grave dificuldade que essas populações têm tido em ter acesso aos meios”, argumentou.
Um terceiro elemento assinalado pelo comunicador social é a possibilidade de ter uma conexão com a globalidade, elevando sua agenda local à agenda nacional e internacional, o que supõe um trabalho de articulação em aliança com outros meios similares.
“Começamos a falar com a ALER (Associação Latino-Americana de Educação Radiofônica), com a AMARC, com o COMPPA (Coletivo de Comunicadores Populares pela Autonomia) e com Indymedia (Centro de Mídia Independente, na sigla em inglês). Meu sonho é que tudo isso se transforme em um fenômeno de comunicação social, integral e nacional, e que a cidadania enfrente por si mesma esses três déficits, fazendo contrapeso aos meios tradicionais que informam de seu ponto de vista de grupo dominante”, previu Molina.
Para o comissário Aguilar, os grupos hegemônicos representam um modelo que fracassou e que está desgastado. “Têm de dar lugar a um novo modelo de desenvolvimento nacional, e isso inclui a democratização dos meios de comunicação.”
Em definitivo, um novo cenário que também implica novos e maiores desafios. “Não teria sentido democratizar o espectro eletromagnético a não ser em um sentido alternativo, anti-hegemônico e antipoder, sem reproduzir modelos urbanos dominantes de comunicação que temos tido até agora”, acrescentou Molina. Neste sentido, o comunicador social explicou que o atual processo terá de ser acompanhado por formação humana, capacitação técnica, busca de mercado justo para boas e novas tecnologias.
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