A esquerda que falta - LUIZ SERGIO HENRIQUE
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A esquerda que falta - LUIZ SERGIO HENRIQUE


O Estado de S.Paulo - 13/10

Mais de um autor clássico de estudos sobre partidos, sua afirmação como instrumento da política de massas, seus limites e mesmo processos de involução oligárquica, chamou a atenção para o papel representado pela social-democracia alemã e os partidos de esquerda que a tiveram por décadas como referência indiscutível.

Nem é preciso voltar a Robert Michels e sua lei de ferro da oligarquização do partido operário. Um autor mais próximo, o italiano Umberto Cerroni, nos legou um livro pequeno e útil sobre a Teoria do Partido Político (Livraria e Editora Ciências Humanas, 1981), escrito no tempo em que alguns julgavam possível ou oportuno renovar o repertório dos velhos PCs a partir daquilo que se convencionou chamar, num certo momento, de eurocomunismo.

Curioso o fato de que Cerroni, sem nem de longe se referir a acontecimentos brasileiros, que lhe eram desconhecidos, ritmava genericamente o processo de criação de um partido de esquerda em três sequências mais ou menos inevitáveis de um mesmo roteiro. Em primeiro lugar, uma pré-história social, uma fase propriamente pré-política, marcada por embates sociais e econômicos. Logo em seguida, a abertura da nova agremiação para a política, ainda que arrastando o peso de limitações corporativas ou, no jargão da tribo marxista, "economicistas". E, por fim, a plena assimilação de uma função "estatal", como capacidade de dirigir estrategicamente a sociedade e o Estado, liberando-o, na boa hipótese, do elitismo liberal avesso à incorporação das massas.

O autor não sabia, mas naquela altura começava sua trajetória no cenário brasileiro um partido que, já no nome, trazia o que ele caracterizava como "persistente economicismo". De fato, um certo "partido dos trabalhadores" portava não só a afirmação orgulhosa de setores novíssimos da economia e da sociedade - nucleados em torno do operariado do ABC paulista e de parte significativa da intelligentsia, profundamente redefinida pela modernização conservadora pós-1964 -, mas também, com a "vaidade de partido", alguma dose de desprezo pela mediação político-institucional, campo no qual então se tecia a frente política que iria derrotar o regime autoritário.

Esse alheamento da mediação institucional, se bem que não estivesse fadado a impedir a contínua e regular expansão do novo partido, conformaria, sem dúvida, uma cultura política específica, um modo de conceber a competição democrática, um modo de se comportar nos momentos históricos cruciais. Valha como exemplo definidor o comportamento assumido por ocasião da aprovação da mais avançada das Constituições brasileiras, há apenas 25 anos. Mesmo assinando o pacto constitucional, o Partido dos Trabalhadores votou contra seu conteúdo, apresentando um texto alternativo que só agora, nas palavras do seu dirigente máximo, vem reconhecido como provável fator de ingovernabilidade, se adotado, e expressão de um radicalismo de facção.

A autocrítica aparece tardia, tímida e pouco articulada, especialmente da parte de quem esteve à frente do Estado brasileiro por dois mandatos e ainda detém considerável poder e influência nas coisas da República - mais até do que seria de esperar numa democracia madura, que tivesse a escorá-la, à esquerda, uma força ou forças com sentido alto de Estado, e não de ocupação ou partidarização das suas instâncias decisivas como recurso de poder para a cooptação quase generalizada de atores políticos e sociais frequentemente antagônicos.

Trata-se, dissemos, de uma cultura, de um modo de ser na sociedade e nas instituições não isento de riscos para a livre dialética democrática. Quase não há setor da sociedade a salvo dos procedimentos de cooptação: no Parlamento, partidos de criação recente, nascidos, longe do roteiro cerroniano, como meros empreendimentos para esvaziar as agremiações oposicionistas, são assediados com a perspectiva de um poder que parece avesso à perspectiva normal da alternância democrática. Na vida econômica, à falta de um horizonte que se possa minimamente chamar de socialista, no sentido de modelo alternativo viável, o risco é a afirmação de um capitalismo mercantil, tão perigoso quanto o seu oposto liberal para o estabelecimento de uma relação equilibrada entre mercado e economia, bem como para a possibilidade de regulação democrática da própria economia.

Essa surpreendente capacidade de fagocitose se equilibra - de modo eleitoralmente rendoso, mas substantivamente falso - com a seleção "sábia" do inimigo a ser abatido, seja de que maneira for. Um cenário no qual o "neoliberalismo tucano" faz as vezes de cômodo alvo retórico contra o qual se movimenta o sistema de poder do partido hegemônico, com seu séquito de empreiteiras, bancos e o grande negócio agrário, para não falar de todo o leque mais expressivo da velha e atrasada direita política nacional.

Tanto quanto a vista descortina, não seria mesmo possível ir além de variados tipos de compromisso entre as forças de mercado e as razões civilizadoras e emancipadoras da democracia política. Não se poderia cobrar da esquerda hegemônica e muito menos dos setores da esquerda democrática que suprimissem o mercado ou o sistema de empresas, num surto estadocêntrico que, no passado, se revelou insuficiente e até nocivo à ideia de uma sociedade tendencialmente autorregulada.

Poder-se-ia, no entanto, esperar, depois de um quarto de século de vida constitucional, a presença iluminadora de uma esquerda de governo que compreendesse plenamente a sociedade aberta, o Estado Democrático de Direito e a defesa esclarecida da supremacia da esfera pública nesse tipo de Estado. Seria, na verdade, o terceiro passo da construção proposta por Cerroni, um passo que, entre nós, apesar das aparências, ainda não foi dado.




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