Por Cláudio Bernabucci, na revista CartaCapital:
Historiador da filosofia e professor emérito da Universidade de Urbino, na Itália, Domenico Losurdo está em São Paulo em junho para um seminário intitulado Cidades Rebeldes e para o lançamento, pela Editora Boitempo, de seu Luta de Classes. Na entrevista a seguir, o acadêmico, um dos estudiosos italianos mais traduzidos no mundo, fala do novo livro, da ascensão dos emergentes e do marxismo, e contesta o historiador britânico Niall Ferguson, expoente liberal.
Vivemos em uma época em que o neoliberalismo é hegemônico e age sem fronteiras. A política, ao contrário, continua presa às estreitas visões nacionais. A escassez de concepções globais da história que aflige o pensamento contemporâneo depende desse limite?
Temos de considerar que, no fim do século passado, com a derrota das experiências socialistas na União Soviética e na Europa Oriental, assistimos a uma colossal mudança histórica. Ao mesmo tempo, a afirmação dos países emergentes e em particular da China como potência mundial representa um choque que é normal não ser imediatamente sistematizado no pensamento. Meu trabalho consiste na tentativa de superar esses limites.
Como o senhor definiria, de um ponto de vista histórico-político, a atual situação internacional?
Nos principais países de capitalismo avançado ocorre um enorme processo de redistribuição de renda a favor das classes privilegiadas. Ao mesmo tempo, de um ponto de vista global, podemos observar uma redistribuição a favor das nações emergentes, aquelas que completam a revolução anticolonialista. Nesse duplo processo, quem coerentemente apoia um projeto de emancipação da humanidade deveria agir para contrastar, em nível nacional, a concentração de riqueza em mãos privilegiadas e, em nível global, favorecer a redistribuição a favor dos países menos favorecidos.
O senhor lê tais processos como umas das várias configurações da luta de classes. É correto?
Exatamente. Para entender minha leitura, temos de lembrar que Marx fala de lutas de classe, sempre no plural. A forma de luta de classes na qual se prestou mais atenção é aquela entre burguesia e proletariado, mas é preciso evidenciar que, sobretudo Engels, mas também Marx, indicou na opressão da mulher a primeira forma de luta de classes. Uma terceira forma é a continuidade da batalha anticolonialista. Na segunda metade do século passado, ela tomou a forma de disputa pela libertação nacional e agora persiste como um embate econômico entre países que querem realizar plenamente sua própria autonomia.
A luta de classes, sobretudo após a derrota do socialismo real, foi recusada como possível interpretação da história contemporânea. Qual é sua resposta a esse tipo de argumentação?
Nesse aspecto, eu polemizo abertamente com Niall Ferguson, considerado hoje o historiador de referência do Ocidente liberal. Ele afirma que no século XX a luta racial teve importância central, enquanto a luta de classes não teve relevância alguma. Vejamos os acontecimentos principais do século passado na Europa e na Ásia. Como demonstram os seus chamados discursos secretos, Heinrich Himmler, um dos principais chefes do nazismo, manifestou com total clareza a vontade do Terceiro Reich de realizar um novo regime escravista. A derrota da União Soviética era a premissa para recrutar escravos, no sentido literal do termo, que, afirmou Himmler, poderiam “encontrar ali e dos quais precisamos para trabalhar e servir a nossa raça”. É correto então afirmar que a luta contra a tentativa de escravizar as chamadas raças inferiores foi uma luta de classes. Um processo análogo aconteceu na Ásia, com a tentativa do império japonês de submeter e escravizar os chineses, imitando assim os alemães no escravismo, maneira mais brutal de colonialismo.
Mao Tsé-tung, em torno de 1938, com muita lucidez, afirmou que naquelas condições a luta de classes coincidia com a luta nacional. Tal coincidência se verificou obviamente também na Europa contra Hitler. Muitos historiadores, não só eu, afirmam hoje que a resistência da União Soviética contra a Alemanha nazista na Europa e a resistência chinesa na Ásia contra o imperialismo japonês foram as maiores guerras coloniais da história. Como tais, elas foram os maiores exemplos de luta de classes no século XX, uma batalha que sempre assume características novas e peculiares. A história do século passado é a confirmação da leitura marxista da história como luta de classes.
A luta de classes resulta útil para interpretar e transformar a realidade contemporânea?
Na época atual, não existem mais as colônias no sentido clássico, pois é evidente que a luta anticolonial chegou ao fim em nível planetário. Esse avanço é, sem dúvida, o resultado de um processo iniciado com a Revolução de Outubro, quando Lenin conclamou “os escravos das colônias a quebrarem o jugo da dominação colonial”. O mundo era propriedade de poucas grandes potências colonialistas, da Ásia à América Latina. Hoje o quadro é outro, mas ela continua como luta anticolonialista: não é mais pela independência nacional, mas assume a forma de disputa econômica. Uma citação de Mao Tsé-tung torna-se útil outra vez.
Na véspera da proclamação da República Popular da China, em 1949, ele avisou: “Se, depois da conquista do poder, não tivermos em conta que os Estados Unidos querem que a China continue dependendo do trigo americano, a China continuará sendo substancialmente uma colônia no plano econômico. Nesse caso, a independência política será meramente formal”. Mao entendeu claramente que o processo de libertação do colonialismo passou da fase político-militar para a político-econômica. Dessa maneira, podemos entender o que acontece nos dias de hoje com a China: uma das formas da luta de classes vigente é a tentativa de quebrar o monopólio ocidental da alta tecnologia. Isso vale também para a América Latina, que se liberou definitivamente da Doutrina Monroe, mas continua a batalha pela independência econômica e pelo desenvolvimento autônomo.
Ilustres prêmios Nobel de Economia evidenciaram que também nos países emergentes o processo de bifurcação entre ricos e pobres aumenta. Como o senhor avalia essa contradição?
Em nível mundial, o capitalismo continua dominante. Portanto, também nos países emergentes vê-se uma acumulação de riqueza a favor dos setores privilegiados, e quase sempre a distância econômica e social entre riqueza e pobreza se acentua. No Brasil como na China, as três formas de luta de classes estão contemporaneamente ativas, não existe só a forma clássica entre burgueses e trabalhadores. É sempre preciso fazer a análise concreta da situação concreta. Cada momento histórico é caracterizado pelo entrelaçamento entre as três diferentes lutas de classes e, a depender dos contextos específicos, determina-se a prevalência de uma forma sobre as outras.
Como definir a experiência chinesa, que adotou um sistema de partido único e a economia capitalista?
Se por capitalismo entendemos o sistema em que o poder é exercido pela burguesia, certamente a China não é um país capitalista, pois o poder está estritamente nas mãos do Partido Comunista. A expropriação política da burguesia foi realizada completamente, enquanto a econômica não, pelo fato de suas capacidades empreendedoras terem sido consideradas úteis, nessa fase histórica, para perseguir os objetivos de interesse geral. Portanto, sugiro aceitar a autodefinição que os dirigentes locais adotaram: a China se encontra no estágio primário do socialismo, que acabará em 2049, centenário da República Popular.
Admito ter compartilhado as ilusões do passado, quando as certezas alimentadas pela filosofia da história garantiam a inevitável vitória do socialismo. Agora não acredito mais nisso, mas afirmar que na China o capitalismo venceu para sempre é uma colossal besteira. Palavra de historiador.
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