A MAIS BELA DOMÉSTICA DÁ PRÊMIO PRA PATROA
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A MAIS BELA DOMÉSTICA DÁ PRÊMIO PRA PATROA


Quem quer ser uma empregada/milionária com 50 mil reais?

Ontem enviei no Twitter um absurdo que um leitor (mil desculpas, mas não vou lembrar quem foi, e o sistema de busca do microblog não costuma funcionar muito bem) me falou na semana passada: um concurso do programa Raul Gil pra eleger a mais bela empregada doméstica do Brasil. Tá, até aí, nada de grave. Por mais que eu não goste de concursos de beleza, porque eles servem para reforçar a ideia de que uma mulher, em qualquer profissão, tem que ser bonita acima de tudo, eles existem às pencas, e não são eu que vou proibi-los. O máximo que posso fazer é não vê-los, e isso eu faço muito bem, modéstia à parte. Mas o que me chamou a atenção neste concurso em particular foi que, quando a empregada se inscrever, deve colocar na ficha o nome da patroa. O prêmio é 50 mil reais em barras de ouro pra empregada, e 20 mil pra patroa. Meu queixo tirou a poeira do chão do escri quando li isso.
Já escrevi sobre a questão: acho que a relação patroa/empregada é uma das maiores heranças do nosso vergonhoso passado escravagista. Quer dizer, a relação patrão/empregada também — não vamos jogar toda a culpa na patroa, né? O patrão atual, ou o filho do patrão, em muitos casos continua se comportando como o dono do engenho que estuprava as escravas. Não sei se você lembra do diretor de cinema (dirigiu Jean Charles, que eu disse que não iria boicotar mas acabei nem vendo) e colunista da Trip que publicou um texto asqueroso dirigido a sua empregada, com quem "transou", mesmo que ela não tenha querido. Lembra? Rendeu o maior bafão, ainda mais porque o editor assinou a coluna dizendo que o cara agora era “mais jeitosinho com as mulheres”. O colunista e a revista tentaram escapar pela tangente, com a clássica desculpa que parece valer pra tudo — era só brincadeirinha, uma piada, obra de ficção. Em nenhum momento eles se deram conta que fazer sexo com uma mulher que não quer fazer sexo é estupro. Um conceito tão abstrato desses não entra em suas cabeças.
Mas tô saindo do assunto. Ter empregada (e repare no verbo, que denota propriedade) é um dos maiores símbolos da classe média. Tanto que as pesquisas de mercado, quando querem medir a classe socioeconômica do entrevistado, perguntam se ele tem um monte de itens de consumo — TV, carro, número de banheiros, geladeira, máquina de lavar, aspirador, empregada doméstica... Ter empregada é um desses privilégios inalienáveis da classe média, que raramente para pra pensar que só é possível contratar empregada quando se vive num país repleto de desigualdade social. Enquanto nos países ricos só os ricos têm empregadas (e, por algum mistério da natureza, a classe média sueca sobrevive sem esse valioso utensílio doméstico), a classe média brasileira gasta seu tempo reclamando do Bolsa Família, já que está cada vez mais difícil arranjar empregada. Tomara que chegue um dia em que seja impossível conseguir empregada. Ou que só seja possível pagando um bom salário. Por favor, não me conte que você é uma exceção que paga uma nota preta pra sua empregada. Eu nunca conheci alguém que reconhecesse que, pois então, o salário que paga a sua Isaura é uma mixaria mesmo. No entanto, a média salarial de uma empregada doméstica no ano passado foi de R$ 350 por mês — abaixo do salário mínimo! E mais de 70% delas não têm registro em carteira. Ou seja, a nossa classe média (da qual sou parte, e quero mais é que todo mundo seja classe média), aquela que reclama do governo pra tudo, que odeia pagar imposto, que acredita tão firmemente na meritocracia, é a primeira a burlar a lei quando esta não lhe convém. E o pior: acha que está prestando um grande favor contratar com menos de um salário mínimo, sem direitos trabalhistas, alguém para limpar sua privada.
Mas voltando ao concurso: outro dia estava esperando começar o único programa de TV que vejo (a ótima novela política e feminista Amor e Revolução) e tive de aturar um minuto de Ratinho. Ele também estava promovendo um concurso de beleza, a mais bela frentista do Brasil. Não sei se, pra se inscrever, a frentista precisava colocar o nome do dono do posto de gasolina na ficha. Não sei se o dono do posto vai levar uma bolada se sua funcionária ganhar. Mas, sabe, desconfio que não. Desconfio que concurso de empregada doméstica seja a única profissão em que se peça o nome da patroa.
Coloquei isso no Twitter, e a reação das minhas queridas seguidoras e seguidores foi imediata. Ficaram tão indignad@s como eu. Menos uma, que já havia puxado minha orelha no dia anterior (juro que esqueci o motivo). Como ela deletou os tweets, vou ter que reproduzir a conversa de memória. Se ela não tivesse sumido com eles, eu os colocaria aqui e daria um jeito de apagar o nome dela, porque não importa quem é a figura. Ela representa todo um pensamento fácil de se encontrar. Não é minha intenção criticar uma pessoa, e sim toda uma ideologia.
Pois bem, a moça me respondeu que não via nada de mais no concurso pedir o nome da patroa, e que eu estava procurando pelo em ovo. Segundo ela, se o concurso não exigisse o nome da patroa, um monte de mulher que não é empregada se inscreveria. Sabe, esse raciocínio é o mesmo das cotas pra negros, e só pode vir de gente que não tem a menor ideia dos seus privilégios: um monte de branco vai querer se passar por negro pra conseguir entrar numa faculdade. Um monte de mulher vai querer se eleger a mais bela doméstica. Não, não vai. Ser negro, e ser empregada (o que tem relação: 70% das empregadas no Brasil são negras ou pardas), não é exatamente um sinal de prestígio. Pode acreditar que tem muito mais negro que se diz branco do que o contrário. Pode acreditar que tem muito mais empregada que finge ter qualquer outra profissão do que mulheres com outras profissões que se digam empregadas. Conte pra boa parte da classe média que você foi escolhida a mais bela empregada numa profissão em que se acredita que as mulheres são horrorosas (simplesmente por estarem associadas à pobreza e por não serem loiras de olhos azuis), e veja a careta que a pessoa faz, como se dissesse “grande m*rda”. Em muitos círculos sociais, isso depõe contra. Olha só o que tirei de um site que fala do concurso: “A ideia da atração é mostrar que existem mulheres bonitas na categoria”. Ou seja, qual é o pré-conceito?
A moça no Twitter voltou a se comunicar comigo horas depois. Ela disse que eu deveria pesquisar melhor antes de tuitar, porque, se eu visse as inscritas, perceberia que elas nem se parecem com empregadas domésticas. E eu quis saber como são as empregadas. A moça me disse que as concorrentes não tinham o tipo físico de uma empregada, já que eram bonitas. A que nível chega a lavagem cerebral: mulheres negras, pardas e pobres não têm como ser bonitas! Essa moça realmente acredita em um padrão único de beleza (que nem é o dela). Isso me lembra uma vez em que, ironizando o que os mascus dizem (que todas as mulheres são interesseiras e só procuram homens com dinheiro ou poder), escrevi que sim, lógico, homens pobres são todos solteiros. Um deles respondeu, indignado: “Não, mas olha quem eles conseguem pegar!”. Como se esposa de pobre nem fosse pessoa. Como se a correlação pobre = feia fosse uma comprovação científica. Como se uma mulher feia fosse menos gente. Bom, essa última eu ouço bastante. Tem um monte de carinha que me chama de mocreia pra baixo, como se 1) a opinião deles valesse alguma coisa pra mim; 2) minha aparência física invalidasse minhas opiniões; e 3) o mundo fosse um eterno concurso de miss.
A moça, antes de dizer que tem orgulho das suas convicções e apagar os seus tweets, ainda me disse que eu procuro polemizar todo e qualquer assunto. Eu respondi: “Você defendeu que o concurso premie patroa de empregada, disse que as empregadas nem parecem empregadas porque são bonitas, e EU que quero polemizar?!”. Eu custo a acreditar que as pessoas falam o que falam sem imaginar que estão sendo profundamente preconceituosas. Putz, elas pensam que estão falando o quê? A Verdade e a Luz?




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