Carolina Foglietti *
Ao longo dos últimos anos o fenômeno cultural do politicamente correto invadiu a vida pública e privada das pessoas, tendo assumido o estatuto de uma nova religião. Estamos vivendo na era dos eufemismos onde o ato de nomear passou a ser meticulosamente cerceado e, dependendo do caso, severamente punido. Uma série de restrições simbólicas, imaginárias e reais, nos foram impostas por parte da própria sociedade, que se quer livre de todo e qualquer preconceito, da maldade e do ódio ao próximo. Trata-se de uma época em que se sonha com um mundo habitado por pessoas completamente tolerantes e isentas de qualquer julgamento... Como se isso fosse possível!
Se, em um primeiro momento, chamar um deficiente físico de portador de necessidades especiais, ou um negro de afro-descente, pode parecer louvável, por outro, devemos questionar ate que ponto tal atitude não é fruto de um sentimento de culpa inconsciente que, ao mascarar a diferença com rótulos que ressaltam o preconceito e a segregação, satisfazem o desejo de manter a alteridade distante de si.
Basta um olhar mais atento para perceber que por trás dessa áurea de boas intenções, jaz uma profunda intolerância marcada por um narcisismo primário, próprio de sujeitos que se mostram incapazes de lidar com as adversidades da vida. Assim, buscam inutilmente se blindar contra o mal-estar próprio ao laço social impondo a si próprios e aos demais uma visão de mundo maniqueísta, neutralizando a linguagem e causando diversos efeitos nefastos principalmente às crianças, que precisam simbolizar seus conflitos e angústias para constituir sua identidade de forma mais saudável.
Para viver de forma mais desejante e autoral, imprimindo em nossa trajetória os traços de nossa singularidade, o ser humano precisa elaborar uma tarefa particularmente difícil: desenvolver a capacidade de dotar a vida em geral de mais significado. Para tanto, sabemos que nada é mais importante do que o impacto da família e das pessoas que cuidam da criança, bem como da transmissão da herança cultural. Quando as crianças são pequenas, porém, a literatura mostra ser um dos instrumentos que melhor canaliza esse tipo de informação. Isso porque para lidar melhor com os obstáculos psicológicos do crescimento – superando decepções narcisistas, dilemas edipianos, rivalidades fraternas – a criança precisa elaborar o que está se passando em seu eu consciente para que possa enfrentar o que se passa em seu inconsciente.
O fenômeno do politicamente correto, porém, se recusa a permitir que as crianças saibam que a fonte de nossos males e insucessos está na própria natureza humana – no pendor de todos os homens a agir de forma agressiva e egoísta, por raiva e angústia. A ditatura, não tão velada, do manto da retidão nutre a ilusão de que todos os homens são bons. Entretanto as crianças sabem que elas não são sempre boas e que, vez ou outra, escolhem, de fato, não sê-lo. Isso contradiz a mensagem politicamente correta, tornando a criança um monstro a seus próprios olhos.
O que mais preocupa nessa cruzada do politicamente correto é a manipulação e a distorção da literatura infantil, que tem a importante função de ajudar as crianças à suportarem, minimamente, a complexidade da vida. É um grande engano supor que, em nome de um "mundo melhor", seria possível retirar do mundo infantil o medo, o mal, a insegurança, a ambiguidade de sentimentos pela mesma pessoa, a angústia, etc. Tentar fazer isso é uma maneira cruel de se proteger contra o inevitável, aprofundando a culpa e a violência de nossos filhos.
Uma parcela dominante de nossa cultura deseja fingir, particularmente no que se refere às crianças, que o lado obscuro do homem não existe, e professa a crença num aprimoramento otimista. No entanto, o que a psicanálise nos ensina e que atestamos tanto em nossas clínicas quanto no social é que o que não pode ser fantasiado sendo, portanto, recusado no simbólico, retorna no real, dando margem tanto às devastadoras, e às vezes irreversíveis, passagens ao ato: suicídios, homicídios, racismo, espancamentos, etc., quanto à graves doenças psicossomáticas.
A criança necessita que lhe sejam oferecidos recursos simbólicos sobre como lidar com situações e sentimentos tão contraditórios e, assim, saber equilibrar de forma mais satisfatória a introjeção da autoridade dos pais com a autonomia necessária para poder se separar deles.
O politicamente correto é uma forma extremamente poderosa de eliminar as diferenças. Quando todos são iguais e não há espaço para a discriminação, isto é, para a separação, a possibilidade de fazer escolhas é aniquilada, bem como o exercício de metabolizar as perdas e assumir as consequências do ato de escolher. Para suportar e tolerar melhor o diferente é preciso que antes possamos escolher o que NÃO queremos ser. Caso contrário, não estaremos lidando com diferenças, mas apenas com nosso acovardado narcisismo que além de cego é cínico.
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