O grande clássico 2001, Uma Odisséia no Espaço, pai e mãe de todas as produções espaciais que vieram a seguir, copiado e parodiado sem pausa, está completando três décadas. Levou quatro anos para ser rodado, quase inteiramente em estúdios em Londres, e foi entregue ao público em 1968 pelas mãos hábeis de Stanley Kubrick. Este americano que vive na Inglaterra desde antes de 2001 é considerado o maior cineasta vivo da atualidade, deixando no chinelo mestres como Coppola, Scorsese, Bergman, Allen, Polanski, Spielberg (Tarantino só atacou três vezes até agora, ainda tem de comer muito feijão pra entrar na lista).
É um Midas do cinema, pois quase tudo que fez virou ouro. Senão, vejamos: quem mais tem na bagagem tantas obras-primas? Glória Feita de Sangue (1957) é visto como o melhor filme antibelicista já realizado, Spartacus (1960) é um dos melhores épicos, Dr. Fantástico (1964), a melhor sátira à bomba atômica, Laranja Mecânica (1971), o melhor pesadelo futurista, Barry Lyndon (1975), outro épico memorável, O Iluminado (1980), o melhor filme de terror, e Nascido para Matar (1987), a melhor exposição da guerra do Vietnã. Que gênero ficou de fora, faroeste e pornô?
Graças a este currículo invejável, Kubrick é aclamado como um dos maiores diretores de todos os tempos. Em geral, nas relações dos críticos, ele só fica atrás de Orson Welles e de Hitchcock. Eyes Wide Shut (algo como Olhos Bem Fechados), seu filme mais recente, desta vez um suspense, ainda em fase de montagem, é esperadíssimo. Ironicamente, Kubrick nunca ganhou um Oscar. Está velhinho, fará 70 anos no próximo domingo, é um recluso que tem medo de avião, logo não viaja, e o intervalo entre suas obras só aumenta. Sidney Lumet, outro excelente diretor, definiu com precisão: "Cada mês que Kubrick não filma é uma perda para todo mundo".
Para muitos, 2001 é sua produção mais bem-sucedida. Kubrick redigiu o roteiro junto com Arthur C. Clarke, baseado em A Sentinela, um conto de nove páginas que Clarke havia escrito em 1948. O filme começa mostrando a "alvorada do homem", quando nós ainda éramos macacos (os crentes que me perdoem, mas já está mais ou menos comprovado) desprotegidos à mercê de leopardos. Chega um imponente monolito preto e, em seguida, um dos macacos descobre que um mero osso pode ser uma arma. Começamos a caçar, viramos carnívoros e expansionistas. Ao disputar território com outro grupo de símios, nosso macaco estraçalha o crânio de outro com sua nova arma.Ironicamente, é quando o macaco aprende a usar o osso para matar um dos seus que ele se aproxima da humanidade. Tudo acompanhado pela música de Richard Strauss "Assim Falou Zaratustra" (tam tam tarammm), que não podia ser mais apropriada para a ocasião. Inclusive, a inspiração de Strauss foi a reflexão de Nietzche, que afirmou que "a distância entre macaco e homem não é tão grande quanto entre homem e super-homem". Nosso macaco joga o osso para cima e, numa edição brilhante, o osso se transforma em nave. Estamos no futuro. Estamos no céu.
Esta cena é a mais ligeira da história do cinema: 3 milhões de anos em alguns segundos. E mesmo assim, apesar de o ser humano desbravar o universo, ele ainda não é um super-homem. Aquela antiga desconfiança de que o homem seja o elo perdido entre o macaco e o ser civilizado aparece aqui com toda sua força. O primeiro diálogo de 2001 chega meia hora após o seu início. Um astronauta espera na base, antes de embarcar para a Lua para investigar um monolito. Enquanto isso, fala com sua filhinha ao videofone. Nossos (semi)super-homens não têm tempo para a família. Já foi apontado que a única cena exibindo uma família unida ocorre na Alvorada, quando ainda éramos macacos. O ser computadorizado estaria ocupado demais para esses detalhes.Corte para uma nave em direção a Júpiter. É a Discovery, tripulada por cinco astronautas, dois deles ativos e três hibernando, e principalmente pelo computador de bordo, o "infalível" HAL-9000. Enquanto HAL começa a manifestar sentimentos humanos, como orgulho e medo, os humanos na nave vão ficando cada vez mais maquinizados. Eles não demonstram qualquer emoção e falam com o computador mais do que entre si. Eles são totalmente frios (e isso talvez explique porque, inicialmente, nos identificamos mais com HAL), diferentes dos heróis mostrados em Apolo 13 ou Os Eleitos. Certamente não são super-homens. Se fossem, não se preocupariam com a mudança de humor de um computador.
HAL falha e os dois astronautas, Bowman e Poole, revêem seus planos. Como chegar a Júpiter desligando o computador que comanda a nave? O que o computador achará de ser desconectado? Claro que eles não podem expor essas idéias na frente de HAL, que a esta altura já está bastante sensível. Procuram o único lugar que HAL não consegue ouvir, apertam teclas e acreditam poder conversar sem o perigo de ofender o computador. E não é que HAL consegue ler lábios? Esta cena nada fica devendo em terror aos suspenses hitchcockianos. E instantaneamente nos remete ao 1984 de Orwell, ao Grande Irmão que tudo vê.
Fácil, fácil, HAL mata quatro dos cinco astronautas. Notamos o quanto somos frágeis, o quanto estamos longe do super-homem, quando HAL liquida aqueles que hibernam. Em segundos, o diagrama que expõe as funções vitais se altera, encerrando suas vidas rapidamente. É um assassinato em série, uma chacina, mas sem um pingo de sentimentalismo. Somos tão vulneráveis quanto nossos irmãos macacos, ao menos antes de descobrirem uma arma.
Só Bowman sobrevive, e agora é sua vez de "matar" HAL. Para tanto, ele se vale daquilo que as máquinas não possuem - a improvisação. Kubrick, como sempre, torce pelos humanos. Mas, ao contrário dos filmes de ação atuais, 2001 não é nem um pouquinho previsível. Quando Bowman está quase terminando a lobotomia do computador, HAL decide cantar uma canção que aprendeu com seu criador. A letra diz "Daisy, I'm half crazy" ("estou meio louco"). É o cúmulo do sarcasmo. HAL está morto, quem sabe até por ter se humanizado demais, e nós sentimos sua falta.Bowman segue sozinho para Júpiter, e é aqui que podemos saborear a coerência de Kubrick ao intitular 2001 de uma odisséia no espaço. Tal qual o poema épico de Homero, onde Ulysses vai ao desconhecido, nesta odisséia o astronauta tampouco tem idéia do que irá encontrar. Depois de uma seqüência 100% psicodélica que encantou a platéia flower-children dos anos 60, a jornada de Bowman parece ter fim. Mas isto é Júpiter? Um quarto de hotel em estilo vitoriano?Aparentemente, Bowman está sendo observado, pois ouvem-se ruídos ao fundo. Ele se vê envelhecer e, logo após presenciar o monolito, morrer e renascer como um embrião no meio do universo. A cena é absolutamente mágica. Kubrick sabe, como qualquer cineasta inteligente, que aquilo que imaginamos e criamos é muito mais interessante e assustador do que o que vemos. Já pensaram se aparecessem homenzinhos verdes? Tiraria toda a credibilidade. E também, quem disse que o monolito é obra de extraterrestres? Talvez ele simbolize Deus.
O mais surpreendente de 2001 não é a nave bailando ao som de "Danúbio Azul", de Johann Strauss (sem parentesco com Richard), ou o fato de ter sido feito antes de o homem pisar na Lua, ou sua concepção visionária e revolucionária. É que ele não está nada datado, 30 anos depois. Certo, algumas seqüências envolvendo gente (tirando os astronautas) parecem meio antigas, mas nunca os efeitos especiais ou as naves espaciais.
Impressionante também é que um dos filmes mais celebrados da história tenha sido impiedosamente malhado pelos críticos na época de sua estréia. A verdade é que 2001 está cheio de interpretações e sentidos. Assista e crie o seu.
CURIOSIDADES SOBRE 2001
2001 tem pouco mais de 30 minutos de diálogos. O resto é música e silêncio.
Alex North chegou a compor uma trilha sonora para 2001, que não foi usada. Kubrick preferiu a música clássica. Isto influenciou um monte de gente, como pode ser visto em Sem Destino e Apocalipse.
O nome HAL é composto pelas letras que, no alfabeto, antecedem IBM, na época sinônimo de computador. Kubrick e Clarke (fotinho) juram que não se deram conta e que foi mera coincidência.
Planeta dos Macacos ganhou Oscar de Maquiagem, no mesmo ano de 1968. 2001, onde os macacos são mais realistas, não.
Entre inúmeras personalidades, James Cameron, diretor de Titanic, revela ter optado pela profissão após assistir a 2001.