Por Paulo Moreira Leite, na coluna Vamos combinar:
O deputado Marco Maia, presidente da Câmara, acaba de reafirmar uma verdade simples e clara: direito de cassar mandato de parlamentares pertence ao Congresso. O deputado está certíssimo e merece aplauso.
Embora tenha discutido causas até difíceis durante o processo do mensalão, o Supremo Tribunal Federal parece emaranhado em confusões desnecessárias quando debate a cassação do mandato dos parlamentares condenados.
A Constituição é clara. Diz em seu artigo 55 que cabe ao Congresso cassar o mandato dos parlamentares, por maioria absoluta, pelo voto direto e secreto.
Está lá, e repito aqui, para ninguém ter o direito de dizer que não conhece o texto:
Art. 55. Perderá o mandato o Deputado ou Senador:
I – que infringir qualquer das proibições estabelecidas no artigo anterior;
II – cujo procedimento for declarado incompatível com o decoro parlamentar;
III – que deixar de comparecer, em cada sessão legislativa, à terça parte das sessões ordinárias da Casa a que pertencer, salvo licença ou missão por esta autorizada;
IV – que perder ou tiver suspensos os direitos políticos;
V – quando o decretar a Justiça Eleitoral, nos casos previstos nesta Constituição;
VI – que sofrer condenação criminal em sentença transitada em julgado.
§ 1º – É incompatível com o decoro parlamentar, além dos casos definidos no regimento interno, o abuso das prerrogativas asseguradas a membro do Congresso Nacional ou a percepção de vantagens indevidas.
§ 2º – Nos casos dos incisos I, II e VI, a perda do mandato será decidida pela Câmara dos Deputados ou pelo Senado Federal, por voto secreto e maioria absoluta, mediante provocação da respectiva Mesa ou de partido político representado no Congresso Nacional, assegurada ampla defesa.
§ 3º – Nos casos previstos nos incisos III a V, a perda será declarada pela Mesa da Casa respectiva, de ofício ou mediante provocação de qualquer de seus membros, ou de partido político representado no Congresso Nacional, assegurada ampla defesa.
§ 4º A renúncia de parlamentar submetido a processo que vise ou possa levar à perda do mandato, nos termos deste artigo, terá seus efeitos suspensos até as deliberações finais de que tratam os §§ 2º e 3º. (Incluído pela Emenda Constitucional de Revisão nº 6, de 1994)
Este artigo foi aprovado por uma maioria de 407 votos na Constituinte de 1988, eleita por 69 milhões de brasileiros, dois anos antes. (O plenário reunia 559 votos, entre deputados e senadores).
Votaram a favor da decisão as principais lideranças da transição que livrou o país da ditadura militar, incluindo dois futuros presidentes da República, Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva. Deputado federal que depois se tornaria presidente do Supremo, onde chegou por indicação de FHC, Nelson Jobim explicou, na época, qual seria o efeito de deixar para os tribunais o direito de cassar um parlamentar, lembra reportagem publicada no Estado de S. Paulo de hoje:
“Teríamos a seguinte hipótese absurda: um deputado ou um senador que viesse a ser condenado por acidente de trânsito teria imediatamente, como consequência da condenação, a perda do seu mandato, porque a perda do mandato é pena acessória à condenação criminal”.
Se houvesse ambiguidade no texto, a discussão ainda seria aceitável. Mas o artigo 55 é claríssimo, como também recorda um editorial da Folha, no último domingo. Transcrevo alguns trechos:
“À primeira vista, a proteção dada aos legisladores federais pode parecer um privilégio descabido e até paradoxal. Por que mereceriam tratamento especial? Ademais, como aceitar que um parlamentar mantenha seu cargo quando a Justiça determinou sua prisão?
A prerrogativa, todavia, tem razão de ser. Sua função é assegurar o equilíbrio entre os Poderes, preservando o Legislativo de abusos do Judiciário. Se hoje a hipótese soa exagerada, não o foi num passado recente -e poderia voltar a ocorrer no futuro. “
O jornal adverte, ainda, para o risco de uma ação arbitrária. Leia:
“O constituinte foi zeloso ao delimitar a independência dos Poderes. Sem tais mecanismos, como evitar que, algum dia, um STF enviesado e arbitrário -diferente do atual, portanto- venha a cassar oposicionistas?
Outro argumento é que, no segundo semestre de 2001, o m”esmo STF reconheceu quem tinha a prerrogativa de cassar mandato:
“Longe dos clamores do mensalão, diversos ministros do Supremo já se pronunciaram a favor dessa prerrogativa exclusiva do Congresso. A última vez que o fizeram foi em setembro do ano passado. Mais que puro casuísmo, mudar o entendimento agora seria uma interferência indevida do Judiciário.”
Outro ponto a reparar é que o Supremo pretende debater a questão na semana que vem.
Ocorre que a Constituição só autoriza a cassação depois que o processo tenha “transitado em julgado.” Isso quer dizer que é preciso aguardar pela publicação da sentença, pela apresentação de recursos, pelo exame dos recursos.
Estamos longe disso, como se sabe, o que torna este debate também precipitado. Não vamos admitir sequer a hipótese teórica de um recurso ser acolhido?
Leio nos jornais que um dos ministros do STF, favorável a cassação pelo tribunal, argumenta que a Constituição é aquilo que o Supremo diz que ela é.
Data vênia, não é possível concordar. O artigo 55 é de uma clareza impar.
Não acho que um STF imaginário teria direito, por exemplo, a decisões como revogar o voto direto para escolha de presidente ou mudar o idioma nacional para inglês, contrariando o artigo 13 que diz que é a língua portuguesa.
Em 1964, o Supremo deu respaldo ao golpe militar que derrubou João Goulart, aceitando a tese oposicionista de que ele abandonara a presidência e deixara o país – o movimento nada tinha de Constitucional.
Em 1969 o Supremo também engoliu a seco as cassações de Vitor Nunes Leal, Hermes Lima e Evandro Lins e Silva, aposentados pelo AI-5. Era isso que era a Constituição?
Os historiadores e homens do futuro nos ajudarão a entender todos os motivos que levaram o Supremo a tomar tantas decisões controvertidas no julgamento do mensalão. É possível que muitas causas sejam bem explicadas e outras se revelem medidas erradas.
Mas o debate sobre o artigo 55 não diz respeito ao futuro, mas ao presente.
Você pode até considerar, como tantas pessoas, que o Congresso tem o dever de cassar o mandato dos deputados que o Supremo condenou.
Pode escrever para seu parlamentar pedindo que faça isso e declare a posição publicamente, já que o voto é secreto. Pode infernizar sua caixa de e-mails e transformar o gabinete num filme de terror. Pode até começar a organizar sua caravana para o dia em que isso for debatido. Eu acho que será democrático e muito saudável.
Só não pode pedir a um deputado para abrir mão de um dever que a Constituição lhe atribuiu. Sabe por que?
Porque os parlamentares só estão sentados no Congresso, em Brasília, porque os brasileiros votaram neles. Eles não falam por si mas pela população brasileira.
Em 1986, quando a Constituinte foi eleita, eles representavam o voto de quase 70 milhões de brasileiros. Aprovaram o artigo 55 por uma maioria de 72% do plenário.
Em 2010, mais de 100 milhões de eleitores escolheram deputados e senadores da atual Legislatura. São apenas eles que podem cassar o mandato de um representante do povo, medida tão extrema e tão rara que o artigo 15 da Constituição chega a dizer que é “vedada a cassação de direitos políticos,” para reforçar o caráter excepcional de medidas dessa natureza.
Sabe por que?
Porque, acima de tudo, a Constituição em vigor preza a separação entre os poderes, base da democracia.
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