AS FEIAS QUE ME PERDOEM
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AS FEIAS QUE ME PERDOEM


Como foi amplamente divulgado por vários sites de notícias, a menininha chinesa que cantou um hino na abertura que não vi das Olimpíadas foi dublada. A verdadeira dona da voz, uma garota de sete anos, foi considerada feia pela organização, e por isso deixada de fora. Revoltante, lógico. Fico pensando se a pobre menina vai encarar isso como um trauma na sua vida: “É, bilhões de pessoas no mundo me ouviram cantando, mas quem apareceu foi uma guria bonitinha”. Pior ainda, no entanto, foi ler alguns comentários de que “tal coisa só pode acontecer num país autoritário”. É piada, né? Vivemos num mundo em que, depois de tantos séculos de opressão, o que ainda se espera das mulheres é que sejamos bonitas. O caso da chinesinha não é em nada diferente ao das gordas barradas numa boate na Grã-Bretanha (o que, por si só, não é nada diferente dos prefeitos lunáticos que proíbem mulheres mais velhas de usarem biquini, ou de sequer frequentarem a praia de seus municípios). Não é diferente dos caras que dividem as mulheres em “essa eu comeria” e “essa eu não comeria”, e falam isso bem alto quando a moça sob avaliação está passando. Somos decorativas. Só servimos pra sermos atraentes ao sexo dominante. Se não somos atraentes, o problema é nosso, não de uma sociedade que não evolui. Todos os dias nos comparamos a imagens de atrizes e modelos “perfeitas”, e nos convencemos de que somos erradas (lembrem-se que vemos mais imagens em um ano do que as mulheres de outras épocas viam em sua vida inteira). A mídia prega que “só é feia quem quer”, ao mesmo tempo que deixa claro que não querer ser linda não é uma opção. Basta consumir, pagar cirurgiões plásticos - quase todos homens - para cortar nossa pele saudável, fazer a dieta mirabolante da semana, comprar roupas de grife que não são feitas para mulheres “normais”, nos escondermos atrás de maquiagem que mais parece pintura de guerra. Tudo isso na ilusão de que, assim, seremos aceitas. Esquecemos que o padrão de beleza único vai só até uma certa idade, e que depois desse limiar, se você, mulher, não for mais desejável e nem pode ser mãe, qual a sua função mesmo?

Um exemplo. Dan Savage é um colunista sexual americano que eu admirava, até notar que suas respostas pros homens que lhe escrevem são muito mais tolerantes que pras mulheres. Ele é gay, e compara a genitália feminina com uma “lata de presunto jogada do alto”, algo que o enoja. Seu tom misógino fez com que eu parasse de admirá-lo. Além do mais, não suporto quando um representante de uma minoria ofende outras minorias. Mas três semanas atrás ele publicou essa carta que partiu meu coração (minha tradução):

Sou uma mulher de 22 anos, e quanto mais velha fico, mais sou ridicularizada por homens heterossexuais por ser feia. Ontem mesmo um homem me perguntou se eu tinha inveja das minhas amigas bonitas e se eu queria ser como elas. Sei que não sou atraente, mas conheci garotas maravilhosas que eu penso serem pelo menos tão pouco atraentes como eu, e que conseguiram encontrar alguém que as ame. Preciso saber se ainda devo me preocupar – é difícil conseguir um emprego, fazer amizades, e basicamente conhecer gente que me tratará como um ser humano. Eu tomo banho todo dia, tento me vestir bem, e uso maquiagem, mas nada disso parece ajudar. Parece que minhas únicas opções são cirurgia plástica ou suicídio, e quanto mais velha fico, mais a segunda opção soa sedutora.

P.S.: Não posso confiar que minhas amigas me contem a verdade, porque elas me amam, o que ou afeta seu julgamento, ou as faz relutarem em machucar meus sentimentos. As únicas referências são de estranhos que sentem necessidade em me dizer o quanto sou feia. Mas não tenho certeza. Devo te mandar uma foto?

Dan respondeu que ela deve procurar um psicólogo(a), disse-lhe que as pessoas ficam menos cruéis com a idade, e que ela deveria continuar vivendo pra ver os caras malvados envelhecerem, ficarem horrendos e morrerem. Pois é, ele não é muito sério. Mas é triste ler um relato desses. Note que a moça não é gorda, disforme nem nada. Ela apenas é considerada feia num mundo que ensina que beleza é algo objetivo. Um mundo doentio que mostra que, se você está fora do padrão, deve ou entrar na faca ou aceitar que as pessoas te destratem. Negras precisam alisar o cabelo e até clarear a pele para se adequarem. Orientais devem ocidentalizar os olhos. Mesmo brancas magras precisam consumir pra serem bonitas. Devem colocar silicone e não serem pálidas demais. Ou seja, qualquer coisa natural é vilanizada, porque mulher não nasce bonita – no máximo fica bonita, se puder se adequar a um padrão inatingível, e essa beleza é efêmera. E nosso poder de atração é julgado desde a mais tenra idade, como no caso da chinesinha. Enfim, se você é mulher, é preciso “investir” na beleza. É preciso esforço e determinação. Mas o que importa mesmo é que é preciso. Como disse Vinícius de Moraes numa frase que é repetida ad nauseam mas raramente criticada, “As feias que me perdoem, mas beleza é fundamental” (fundamental, claro, só pra mulheres). Até quando vamos continuar perdoando uma sociedade que nos chama de feias todo santo dia? Não te perdôo, Vinícius.





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