Campos: uma análise política da mídia
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Campos: uma análise política da mídia


Por João Feres Junior, no site Carta Maior:

Uma capa de jornal pode conter muita coisa. A capa de O Globo do dia 15 de agosto de 2014 contém um resumo da postura da grande mídia perante a cobertura das eleições e, ao mesmo tempo, a encruzilhada onde se encontra.

Eduardo Campos morreu repentina e tragicamente no dia 13 de agosto. No dia seguinte, os três maiores jornais brasileiros, Folha de S. Paulo, O Globo e Estado de S. Paulo publicaram farta cobertura da tragédia, explorando seus aspectos pessoais, familiares e políticos. Em 15 de agosto O Globo estampou em sua manchete: PT pressiona para rachar o PSB de Eduardo Campos. Dois subtítulos se seguem às letras garrafais da manchete: "Lula e Dilma telefonaram para o presidente do partido, ligado a petistas" e "Marina Silva, porém, é a preferida de parte dos socialistas e de aliados que compõem a coligação...".

Essa chamada de capa conduz a uma matéria na página 3 onde se lê em letras garrafais, maiores do que as da manchete da capa: "PT tenta dividir PSB". O texto da reportagem, assinada por Julianna Granjeia, é repleto de insinuações de que o PT e Lula tenham agido de maneira moralmente condenável, desrespeitando o luto pela morte de Campos. O resto da matéria tem um claro sentido de mostrar que Marina conta com maior apoio tanto dentro do PSB como entre os aliados, inclusive com um subtítulo cândido como esse: "Líderes: ex-senadora está diferente".

Destaque para comentário de Roberto Freire, líder do PPS, aliado histórico de Serra e do PSDB, que miraculosamente bandeou-se para a candidatura do PSB: "queremos que tenha segundo turno".

Voltando à capa, abaixo da notícia principal vem a chamada: "Irmão de Campos pede Mariana Candidata". Ao lado, charge de Chico Caruso mostrando Marina com olhos de penetrante azul encarando Aécio e Dilma, que se encolhem intimidados.

Na sequência, de cima para baixo, temos um box chamando para entrevista com Antônio Lavareda, com o título "Cenário eleitoral é favorável ao PSB" e seis chamadas para colunas internas do primeiro caderno, assinadas por Merval Pereira, Míriam Leitão, Ricardo Noblat, José Casado, Nelson Motta e Arthur Dapieve.

De cima para baixo, a capa começa com um ataque ao PT, Lula e Dilma e segue com o anúncio com certo entusiasmo do favoritismo de Marina, contra opositores internos do PSB e contra as articulações do próprio PT. A entrevista de Lavareda reforça a importância súbita supostamente adquirida pelo PSB como resultado da tragédia. E a charge de Caruso representa uma super Marina, empoderada frente aos competidores por ter adquirido os olhos azuis de Eduardo, em que pese o profundo mal gosto do autor.

Mas são os seis drops de notícia a parte mais saborosa da capa. Essas seis chamadas para colunas internas do jornal são como o resumo do resumo de todo o momento eleitoral da cobertura.

Merval Pereira é o primeiro da lista. Crítico acerbo de PT, Lula e Dilma, esse articulista adota uma posição de cautela quanto ao futuro da chapa do PSB, elencando os prós e contras da escolha de Marina, coisa que já havia feito no dia anterior, edição da morte de Eduardo Campos. A perspectiva é sempre a das campanhas, ora do PSB, ora do PSDB, ambos imbuídos da finalidade de derrotar Dilma e o PT.

A chamada para a coluna de Miriam Leitão diz: "País vive momento de profunda incerteza na política e na economia". A palavra incerteza aqui dá o tom. Advinda da linguagem econômica, tal expressão denota, acima de tudo, as expectativas dos operadores financeiros. A coluna em si deixa isso claro. Ela é uma elegia a Campos, muito palatável aos investidores, e um alerta para os perigos do quadro de indecisão atual. Disso tudo, Leitão declara ter somente uma certeza, a de que "tudo mudou na dinâmica eleitoral". Para além dessa leitura política, a jornalista repete mantras que a tem consagrado desde, pelo menos, 2008 como arauto de uma suposta crise econômica que até agora não se consubstanciou. Mas Leitão não está sozinha. Ela representa muito bem o perfil da cobertura econômica do seu jornal, O Globo, e de outros dois grandes jornais brasileiros, Folha de S. Paulo e Estado de S. Paulo, como mostra o gráfico abaixo:



Somente no ano de 2014, foram 455 notícias negativas sobre economia nas capas desses jornais contra somente 17 positivas. Só a título de ilustração, até notícias positivas são entremeadas com comentários desfavoráveis, como nessa manchete de 19 de abril de O Globo: "O desemprego no Rio cai a 3.5%, mas a inflação diminuiu renda". Outras têm um caráter altamente especulativo, como a manchete "Alta da inflação ameaça diminuir a classe C" (O Globo, 25/05). Fato é que para a grande mídia impressa o Brasil já atravessa uma crise econômica faz tempo, por mais que os fatos muitas vezes não corroborem essa percepção. Esses números crescem a cada dia. Assistimos no presente a uma verdadeira avalanche de notícias econômicas negativas nas capas dos jornais.

A cobertura do Jornal Nacional não é diferente, como mostra o gráfico abaixo:

Cobertura agregada do Jornal Nacional - Economia - 2014



São 10.939 seg de notícias negativas contra 3.843 seg de neutras e 1.097 seg de positivas. A proporção entre negativas e neutras atinge a marca de quase 3:1. Isto é, não somente os consumidores de jornal impresso, entre eles toda a classe política, empresários e boa parte da classe média, é informada de uma suposta crise econômica, como o universo de expectadores do Jornal Nacional, que é assistido por todas as classes sociais em todo o país.

Voltando aos drops da capa do dia 15 de agosto, a chamada para o texto de Ricardo Noblat lê-se assim: "Para parentes de aliados de Eduardo Campos, é inconcebível que o PSB apoie Dilma". Crítico ferrenho do PT e de seu governo, assim como Merval e Míriam, Noblat dá a sua coluna o título "Recife apoia Marina".

O artigo da página 3 é uma lista de razões segundo as quais o PSB deveria escolher Marina. Uma frase é realçada na diagramação do jornal, com letras maiores: "como desrespeitar a vontade de Eduardo, que acolheu Marina?".

José Casado, o próximo drop da lista é um ponto fora da curva. Seu texto é mais analítico que especulativo; uma análise da situação que tem como base a biografia política de Marina e a tese de que ela precisa se "reinventar até a semana que vem". A conclusão é taxativa, contudo, de que seria suicídio político do PSB não escolher Marina.

As notas mais tragicômicas dessa cobertura de O Globo ficam com os dois últimos drops, as chamadas para os textos de Nelson Motta e Arthur Dapieve. O primeiro, crítico musical, foi tornado colunista político pelo jornal. E o segundo, ainda crítico musical, se arvorou na ocasião a escrever sobre política.

Motta publica hoje na página de opinião do jornal. O Globo tem, na verdade, duas páginas dedicadas à opinião, que ficam no final do primeiro caderno. Nesse dia o jornal publicou um editorial defendendo a redução de impostos e o corte de gastos públicos e outro defendendo a privatização de serviços públicos e criticando o governo por ter preconceito ideológico contra tal prática. Há um texto de Rogério Furquim Werneck, economista da PUC-Rio, acusando o governo federal de má administração da Petrobrás, Dilma de fazer uso político da empresa quando lhe convém. Em outra coluna, Luiz Garcia mostra indignação quanto à transferência da pena de José Genoino para o regime aberto; chega a chamar os réus de "bando" e pede que a "opinião pública" não se esqueça do "mensalão". Ao lado, há um texto de um economista da FGV, acusando a burocratização da política industrial do governo como responsável pela suposta deterioração do ambiente de negócios. E, por fim, artigo de José Paulo Kupfer defendendo reforma fiscal, com o objetivo de simplificar o sistema tributário e reduzir a carga tributária de 36% para 30%.

É essa a vizinhança do texto de Motta. Todos são direta ou indiretamente críticos ao Governo Federal, a sua titular e/ou ao seu partido, o PT. Alguns, como os de Werneck e Garcia, são agressivamente antipetistas. Também crítico virulento do PT e da política em geral, Motta escreve um texto curto, com ideias simples sintetizadas no título: "A favor do voto contra". O autor fala da necessidade da criação do voto contra, ao lado do favorável, como maneira de dar efetividade às taxas de rejeição. Cita os EUA como exemplo virtuoso, por ter o instituto do recall.

E conclui que no Brasil os votos nulos, brancos e abstenções serão o fator mais importante nas eleições que se aproximam e que os supostos 70% de descontentes (não se sabe de onde tirou a cifra), ao invés de somente votar em Aécio poderiam também "se livrar de Dilma e do PT".

Diferente de Motta, que aparece na página de opinião do primeiro caderno, Dapieve tem coluna no segundo caderno, o cultural. Seu texto é emotivo e narra a frustração do autor com a política em geral, com a polarização entre PT e PSDB e com a morte de Campos que, para ele, significava uma alternativa "a tudo que está aí". O texto é cético em relação a Marina e termina em tom depressivo, da mesma forma como começou.

Esses dois últimos textos são marcados pelo sentimento da antipolítica, pela rejeição da política real em nome de supostos ideais éticos não bem explicitados.

Neles ouvimos os ecos das Manifestações de Junho de 2013 que, por seu turno, ecoavam concepções dessa natureza que já circulavam em jornais e programas televisivos muito antes dos acontecimentos. A análise do Manchetômetro acerca da cobertura do tema da política nas capas dos jornais impressos, que inclui todas as chamadas, notícias e textos acerca das instituições políticas brasileiras (partidos, congresso, executivo, etc.), agências, empresas e políticas públicas, e personalidades políticas, mostra um viés extremamente negativo para todo o ano de 2014, como demonstra o gráfico abaixo:









Só para se ter uma ideia de proporção, foram 56.868 seg de notícias negativas contra 23.159 seg de notícias neutras, meramente descritivas, e 4.747 seg de notícias que mostravam algum aspecto positivo da política. A proporção de notícias negativas para neutras é de 2,5:1.

Em suma, não são somente os consumidores do jornalismo impresso, os supostos "formadores de opinião", a classe média, que é atingida por esse enquadramento extremamente negativo da política; é basicamente toda a população sujeita à cobertura do Jornal Nacional.

Os elementos na capa do Globo podem ser divididos em duas categorias, os de mais longa duração e os conjunturais. Os primeiros são o ataque ao PT e o agendamento e enquadramento de uma suposta crise econômica e de outra suposta crise política. O viés anti-PT apareceu também forte em nossa análise da eleição de 2010, ou seja, também não é novidade. Só para ficarmos nos drops da capa, com a exceção de Dapieve, os outros cinco colunistas são críticos ferrenhos do Governo, de Dilma e do PT, aos quais se dedicam a desancar com afinco e regularidade, alguns diariamente. Dapieve não é simpático, tampouco, somente ocupado em escrever sobre outros assuntos. Isso dá uma ideia do nível de desequilíbrio dos textos de opinião do jornal, nível esse corroborado por nossa rápida análise das páginas internas de opinião.

Pesquisa que fizemos no LEMEP sobre as manifestações de 2013 mostram que os agendamentos e enquadramentos de dupla crise, econômica e política, estão presentes por todo o ano passado, de maneira forte, nos três jornais.

Quanto à conjuntura, contudo, o que transparece é um quadro ainda um pouco conturbado. Por um lado, as reportagens do jornal apontam para o favoritismo de Marina com entusiasmo, assim como alguns colunistas, por exemplo, Noblat. Na morte, conferiram a Eduardo Campos uma importância e valor que nunca haviam lhe dado em vida. O desafortunado político pernambucano foi decantado nas páginas dos três jornais como um tipo de messias: aquele que iria trazer a boa nova da política depurada de "tudo que está aí". E muitos textos, como a caricatura de Caruso representa de maneira grotesca, apostam na transmissão das virtudes do desaparecido para Marina. Mas colunistas como Merval e Leitão parecem adotar uma postura cautelosa. Ambos louvaram Campos em suas colunas mas resistiram ao entusiasmo de ungir Marina como solução redentora. Uma rápida olhada nos grandes jornais de São Paulo revela também insegurança quanto ao personagem Marina.

Agora que acabamos de saber da confirmação da candidata podemos perguntar: será que ela é a garantia final de um segundo turno? Será que esse segundo turno, se houver, vai ter Aécio Neves como contendor? É mergulhada nas contradições que as respostas a essas perguntas suscitam que agora se encontra nossa grande mídia. O que parece a salvação para alguns pode ser, na verdade, a sentença de morte para outros.

* João Feres Junior é cientista político, professor do IESP/UERJ e da UNIRIO e coordenador do Manchetômetro, website de acompanhamento da cobertura midiática das eleições 2014 do Laboratório de Estudos de Mídia e Esfera Pública (LEMEP) do IESP/UERJ.




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