CLÁSSICOS DUVIDOSOS: CRIMES E PECADOS E PONTO FINAL, DOIS GRANDES WOODYS
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CLÁSSICOS DUVIDOSOS: CRIMES E PECADOS E PONTO FINAL, DOIS GRANDES WOODYS


Vista de rico em Ponto Final (05).

Crimes e Pecados (1989) é a prova cabal no cinema de que deus não existe. É um filme sobre moralidade, mas sem muita esperança. O oftalmologista que manda matar a amante não só escapa sem culpa, como prospera. O produtor mulherengo e ditatorial (comparado a Mussolini) só melhora de vida. Já as pessoas com um centro moral não terminam bem. O filósofo judeu se suicida (deixando nada mais que um bilhete dizendo “Vou sair pela janela”). O rabino fica cego sem explicação. A produtora executiva acaba sucumbindo aos encantos do Mussolini. Mas claro que nem tudo é tão certinho como eu tô contando. Mussolini tem um lado que a gente não conhece (ele é inteligente, sensível à poesia). E a alternativa imediata da produtora seria o personagem do Woody Allen que, apesar de ser boa gente, é meio loser. Começa documentários que não termina, e não ganha um centavo com eles.E lógico que Crimes tá cheio de ótimas piadas também, se bem que quase todas vêm da boca do Woody (uma vem da Mia Farrow. Alan Alda lhe diz: “Se você se esforçar bastante, pode ter o meu corpo”. E ela: “Tem certeza que não prefere deixá-lo pra ciência?”). Woody, que não transa com a esposa faz um ano (ele se lembra da data por que foi o aniversário de Hitler), reclama com a irmã: “A última vez que entrei numa mulher foi quando visitei a Estátua da Liberdade”. Ele manda uma carta de amor à amada, que meses depois a devolve. Woody diz: “Minha única carta de amor. Mas tudo bem, porque eu plagiei quase tudo do James Joyce mesmo. Você provavelmente estranhou todas as referências a Dublin”.
E tem toda uma paixão pelo cinema também, que é sempre uma marca registrada do Woody. Ele vai com a sobrinha e com Mia ver matinês de filmes antigos. No final, ele, o diretor, se encontra com seu protagonista, o oftalmologista, e os dois discutem a trama. O veredito: “Se você quer um final feliz, vá ver um filme de Hollywood”. Pois é, só que final feliz, neste caso, é algum tipo de castigo (judicial ou divino) pra quem comete crimes. E não acontece nada.
(Aliás, 89 foi um bom ano de Oscar. Além de um dos grandes Woody's, teve o melhor Spike Lee, Faça a Coisa Certa, Sexo, Mentiras e Videotape, Harry e Sally, Parenthood, Sociedade dos Poetas Mortos, Valmont, Glory, Cinema Paradiso, Camille Claudel etc).
Ao rever Crimes, pensei: opa, tá cheio de ligações com Match Point (Ponto Final), que Woody fez 26 anos depois. Mas não tem não. As únicas semelhanças é que ambos estão entre as obras-primas do Woody e são sobre sujeitos que, pra facilitar a vida deles e não terem que pagar pelos seus adultérios, matam a amante. Só que, enquanto Crimes é judaico até a medula (deve ser o filme mais judeu do Woody, e logo nessa produção ele decidiu mostrar que deus está morto!), Ponto não tem religião. A questão religiosa é substituída pela luta de classes, por assim dizer. Ponto é sobre alpinismo social, e em Crimes todo mundo é da mesma classe (se bem que a amante assassinada, feita pela Anjelica Huston, é comissária de bordo e não sabe quem é Schubert, o que a coloca numa outra classe). Em Ponto é o assassino que está em desvantagem cultural e precisa aprender as referências pra se encaixar na high society. Em Crimes tem algo de gênero, da amante admirar e querer aprender com o adúltero. Além do mais, há a diferença de idade. Em Ponto o casal é muito mais jovem, e isso interfere. E a discussão gira mais em torno do destino que da moralidade. Mas ambos estão entre as melhores obras da longa filmografia do Woody.Ponto é o filme mais incomum do Woody. É praticamente como se fosse um filho bastardo, fazendo minha imaginação correr sobre se o que é mostrado em Você Vai Encontrar o Homem dos Seus Sonhos é ficção mesmo (um carinha ficar com o manuscrito de outro que morre, e publicá-lo como se fosse seu). Não tem nada a ver com o Woody. Ok, ele trata de ambição e pobreza em O Sonho de Cassandra, mas não tem comparação. Em Ponto fala-se de dinheiro o tempo inteiro, do começo ao fim. É a história de um jovem pobre, esforçado, ganancioso, que cultiva (é a palavra certa no caso) seu amor pela cultura da classe alta (ópera, pintura, literatura) como um meio de ascensão social. Ele não sóCrime e Castigo ― ele estuda a obra, certo de que saber analisá-la pode render frutos. E aí ele se casa por dinheiro com uma rica herdeira. Mas o estranho é que ele é todo formal e evasivo desde o início, na entrevista de emprego para ser professor de tênis num clube de ricos. Ele só parece ser ele mesmo quando está com a única outra pessoa de sua classe, a americana aspirante a atriz e noiva de seu futuro cunhado. Com ela ele é sexualmente agressivo e obcecado. Só com ela. Com todo mundo ele desempenha um papel. Outra diferença com o Woody de sempre é a falta de humor. Claro, há vários momentos em que a gente ri (talvez mais de nervoso), como a ironia máxima da frase “todos sabemos que você é perfeitamente capaz de engravidar uma mulher”, sendo que, apesar das dificuldades pra engravidar a esposa, sua amante está grávida. Mas não tem alívio cômico. Não tem alívio, ponto. É um filme tenso. E tem tanta coisa incrível. O anel bater na cerca e voltar é um achado; eu até me arrepio com essa cena. Adoro que a gente pensa que o sonho no final, em que o protagonista conversa com suas vítimas (a frase “Você foi um efeito colateral” é muito política) parece ser dele, mas não é: é do detetive que desvenda o caso. E gosto muito também como o filme se transforma no seu terço final, e como toda a sequência do assassinato é inesperada e implausível, mas a gente fica sem escolha e torce pelo crápula. E é uma graça como os ricos não acreditam em sorte. Pra eles, é tudo meritocracia. Eles são ricos porque mereceram, não porque nasceram com o bumbum pra lua, já num berço de ouro.
Então, nada disso é sequer sugerido em Crimes e Pecados. São duas obras bem díspares, com parte de uma trama em comum. Mas é muito pouco pra desmerecer Ponto como não original. Quer dizer, o cara faz um filme por ano, todo ano, praticamente desde 1966 (são 46 filmes dirigidos por ele já). Algum dia ele teria que repetir alguma coisinha. E é ridículo que a gente fale em repetição logo no seu filme mais atípico, o grande Ponto Final.




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