Vi várias vezes a “Fábrica” original, que tem mais de trinta anos, mas não lembro de nada além da energia maníaca do Gene Wilder. Eram outros tempos, pré-Michaelsianos. O que mais chama a atenção nesta versão pós-moderna, fora a semelhança com o Michael, é a apologia que a película faz às delícias do capitalismo e à exploração do trabalho escravo. No início Willy abre uma fábrica que proporciona carteira assinada pra cidade inteira. Porém, como empregado remunerado é tudo espião desonesto, os negócios vão mal e ele despede todo mundo. Só reabre a fábrica quando ela está totalmente automatizada. Quem maneja as máquinas são uns homenzinhos, os oompa-loompas, que trocam seu trabalho por chocolate (não é mera coincidência que todos os nativos escravos sejam interpretados pelo mesmo ator com cara de terceiro-mundo). Não há tensão sexual porque os nativos são todos homens, e porque, bem, o Willy/Michael não parece ser muito chegado a esse esporte.
O filme mostra como as máquinas são boas. Ninguém se incomoda em perder o emprego por causa delas, pois vai encontrar ocupação muito melhor. E há pelo menos quatro pimpolhos que são cruelmente castigados por “Fábrica”. Não por serem maus ou mimados, mas por serem improdutivos. Criança boa é criança que trabalha, de preferência sem salário. Tem umas cenas em que o visual da fantasia lembra a Revolução Industrial, aquela época gloriosa, pré-direitos trabalhistas, em que as criancinhas morriam nas fábricas. Mas aqui não há emprego, logo, não há risco pros guris morrerem trabalhando. É uma lógica perversa: “Fábrica” celebra o sistema, mas tortura crianças por não produzirem nada.
O capitalista selvagem acha legal também escravizar animais. Há ovelhas rosas que ele prefere não detalhar como são usadas, esquilos neuróticos, e uma cena que leva alguns milésimos de segundos e que deve ter dado uma briga feia com associações de defesa dos animais. É um trocadilho sem graça com “leite batido”, o nosso chantilly. Mostra uma vaca viva, pendurada, sendo chicoteada. Ou seja, a fantástica fábrica é uma em que o trabalho é escravo, em que bichinhos são maltratados, e onde o patrão é um sádico. Parece familiar.
Não interessa que eu provavelmente trabalharia como escrava, inclusive escravinha sexual (se houvesse algum interesse da parte do Willy Michael, o que duvido) em troca de fornecimento vitalício de chocolate. Mas escravizar um povo inteiro? E não me importa que o Willy tenha tido uma infância traumática (o pai era dentista) – isso não lhe dá direito de sair por aí explorando esquilos, pô.
Tem uma parte importante que tá sendo negligenciada por esta crônica: o chocolate. Na realidade, a única cena que achei realmente apetitosa foi uma em que constroem um palácio de chocolate. Depois, chega uma hora em que um menino diz pro esquisitão que não trocaria sua família nem por todo chocolate do mundo. Olhei pro maridão e decidi que por menos de dez quilos de chocolate, eu me sentiria ofendida com a oferta. Agora, se chocolate possui substâncias que deixa as pessoas felizes, por que será que os escravos e as criancinhas que são punidas uma a uma raramente sorriem?
É estranho. A gente sabe que não habita o mesmo mundo de Hollywood quando um ricaço questiona o Willy sobre a utilidade de inventar um chiclete que substitua as três refeições do dia, e o bicho babaca não sabe responder. Ou quando eu leio uma dúzia de críticos americanos e nenhum deles menciona a exploração de trabalhadores. Ideologicamente, portanto, “Fábrica” é condenável. Mas gostei do lado visual, do trauma profundo que o filme pode causar aos espectadores mirins. Leve seus filhos pra ver a fantasia. Além de pesadelos garantidos pro resto da infância, eles terão uma lição bem didática de como funciona o capitalismo.