A estréia do diretor cearense Karim Aïnoux narra um pedaço da existência de um ícone da malandragem carioca. Na definição de uma das personagens, o sujeito é "mais doido que cão raivoso". Na Lapa dos anos 30, quem viria a se tornar Madame Satã é um carinha muito de mal com a vida que mora com uma prostituta e a filhinha dela. Ele bebe, toma drogas, briga, manda e desmanda. É um tirano. Uma de suas qualidades redentoras é que, apesar de ser negro, pobre e homossexual, ele não se vê como vítima. Não leva desaforo pra casa.
Ahn, isso é suficiente pra transformar alguém em lenda? Talvez lenda seja exagero. Aqui no Sul, aposto que quase ninguém ouviu falar na figura. Nos anos 80, quando eu vivia em SP, o nome dele era notório porque batizou uma das danceterias mais badaladas da época. A gente não tinha a menor idéia de quem havia sido o sujeito (não é o tipo de assunto que se estuda na escola), mas a boate era cult. Tentei ler um tiquinho da biografia de Madame pra não passar por ignorante total, e descobri que ele viveu 76 anos, 27 desses na prisão. Filho de escravos recém-libertados, ele foi trocado por uma égua na sua infância. Depois começou a fazer shows vestido de mulher, teve orgulho da sua marginalidade, foi entrevistado pelo "Pasquim", essas coisas. Como que eu sei? Li na internet, ué. O filme que leva o nome do mito não menciona nada disso.
Se o homem fosse super conhecido, como o Zumbi do Quilombo de Palmares, até que seria relevante mostrar seu surgimento. Mas não é. A gente sai do cinema sem compreender porque ele é importante. Porque se vestia de mulher? Porque já tomava drogas naquele tempo? Porque era bom na capoeira? O filme faz crer que ele é lendário porque a polícia não gosta dele. Eu devo simpatizar com um transgressor porque a polícia o odeia? É como querer que eu me apaixone pelo Saddam só porque o Bush o quer morto. Sinto muito, Saddam, meu coração pertence ao Thiago Lacerda.
O que me leva a mais questionamentos. Qual o propósito de "Madame Satã"? Tá certo que isso pode ser dito da maior parte dos filmes, mas ainda assim acho uma pergunta válida. É entreter? Não me faça rir. Emocionar? Não funciona. Revolucionar a sétima arte? Não sei não, já vi outras obras escuras com fotografia borrada feitas com a câmera na mão. Mostrar a biografia de uma pessoa famosa? Então deixaram esse pedaço na sala de montagem. Duvido que o objetivo do filme fosse dar sono, mas é nisso que ele se revela mais eficaz.
Claro que os atores estão bem, particularmente o principal, Lázaro Ramos, que fez a minissérie global "Pastores da Noite". Mas o roteiro não ajuda. Contam as más línguas que, quando o filme foi mostrado em Cannes, houve uma debandada de jornalistas durante a projeção, chocados com as cenas homossexuais. Confesso que as cenas também me deixaram um tanto constrangida. Não por serem homo. É o velho problema do sexo no cinema. Vamos supor que uma cinebiografia da Mae West, sei lá, mostre-a levando um homem pra cama. Entre vários closes de beijos com língua, a Mae diz pro cara, "põe a mão aqui, meu garanhão", e a câmera acompanha a ação da mão. Se a cena não tivesse o menor humor, você não ficaria um pouco envergonhado imaginando onde eles querem chegar? Nada contra sexo, pelo contrário. Mas sexo num filme geralmente paralisa a trama. E isso acontece inúmeras vezes em "Madame Satã", cuja trama já é bem paradinha por si só.
Sem falar que, pra mim, filme que termina com quilos de explicações por escrito revela uma das duas hipóteses: ou acabou a verba, ou o pessoal foi abatido pela preguiça. Mas vá ver "Madame" pra discordar de mim, pelamordedeus.