“Senhor” mostra a força de um ótimo roteiro, escrito (e dirigido) pelo Andrew Niccol, que fez “Gattaca” e roteirizou “Truman Show”. A narração em off avisa que uma em cada doze almas possui arma de fogo. E conta, em primeira pessoa, com incansável cinismo, o destino de um contrabandista de armas, que vende equipamento mortífero pra vários países, principalmente pros africanos, pra que eles possam se liquidar mutuamente. O traficante diz que vendeu pra todo mundo, menos pro Bin Laden, e não por motivos morais, lógico, mas porque na década de 80 os cheques dele voltavam. Quem faz essa figura trágica que é o traficante é o Nicolas Cage, no seu melhor papel desde “Despedida em Las Vegas” (e isso tem dez anos!).
Bom, o filme oferece tantas tiradas maravilhosas que eu preciso contar algumas. Por exemplo, ao explicar o desmantelamento da União Soviética e louvar uma metralhadora disputadíssima, Nicolas diz “uma coisa é certa: ninguém tava comprando os carros deles”. E Hollywood tem uma ponta como catálogo de armas. Assim: um sujeito encomenda a bazuca do “Rambo”. E o Nicolas: “Qual? A do I, II ou III?” Porque em cada um o Stalla exibe um modelo diferente. Tem também os caminhões da ONU que trazem mantimentos pras vítimas africanas. Quando os alimentos são descarregados, os caminhões podem transportar as metralhadoras tranquilamente. Mas o traficante cínico explica pra um agente que o persegue que preferia que o pessoal usasse suas armas e munições sem acertar os alvos. Daí ele venderia ainda mais. Mais tarde, devido à pressão conjugal, Nicolas tenta ser honesto e mudar de ramo. Ele decide fazer algo perfeitamente legal: explorar países em desenvolvimento (ói nós aqui outra vez!). Só que infelizmente o lucro não é grande coisa, já que muita gente faz isso, sabe como é.
Há também uma reflexão interessante sobre a AIDS. Como, na Libéria, 25% da população está infectada, o Nicolas acaba recusando os favores sexuais de duas modelos. Uma delas lhe diz que isso é besteira – por que, afinal, se preocupar com uma doença que leva dez anos pra matar quando tantas outras coisas podem matar tão mais rápido na África? Depois a gente ouve que o maior contrabandista de armas do universo é o Bush. E qualquer filme que expõe um ditador sanguinário comemorando a fraude das eleições americanas de 2000, porque agora ele também pode afirmar que seu país é uma democracia, merece ser visto. Minha única crítica é quanto à trilha sonora, um tanto óbvia demais. Acho que é óbvia de propósito, mas enfim, não dá pra usar a música do “Aleluia” ironicamente quando “Edukators” fez isso agora a pouco (aliás, tem como usar essa canção a não ser ironicamente?).
A mantra que o traficante repete pra se justificar, de que armas são apenas um meio de defesa, é o argumento dos 65% de brasileiros que votaram “não”. Se você foi um deles, vai por mim: veja o filme pra se arrepender.