DE OBRAS CANÔNICAS FECHADAS PRA DISCUSSÃO JÁ BASTA A BÍBLIA
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DE OBRAS CANÔNICAS FECHADAS PRA DISCUSSÃO JÁ BASTA A BÍBLIA


Uma canção como Atirei o pau no gato nunca deveria ter existido.

Ainda não falei sobre a polêmica em torno de Caçadas de Pedrinho, de Monteiro Lobato. Tenho uma opinião puramente leiga, pois nunca li o livro, não sou especialista em literatura brasileira, nem professora de ensino fundamental. Mas, antes de mais nada, qual é a polêmica, ou como diz uma amiga minha, qual é o pó? O pó é que a obra é racista, e bastou falar em colocar uma mísera notinha de rodapé explicando o racismo pro mundo cair abaixo: Censura! Esses comunas querem fazer uma fogueira de livros! E juro que até agora não vi ninguém falando em censurar Lobato, apenas querendo discutir o que fazer com uma obra dessas numa sala de aula.
A comparação mais óbvia nessa polêmica em torno de Lobato é com Huckleberry Finn, do Mark Twain. É um clássico absoluto, estudado nas escolas americanas direto, mas, gico, tá cheio de problemas, porque um dos personagens principais é um escravo foragido. Por conta do uso ilimitado da palavra nigger (que aparece 219 vezes) o romance está sempre na lista dos “banned books” (livros banidos) dos EUA. Funciona assim: pais denunciam uma obra como inadequada para estar no catálogo de uma biblioteca ou escola, e muitas vezes ela acaba sendo retirada (obviamente os mais banidos no momento são os da série Harry Potter e Crepúsculo). Vi que vão lançar uma edição trocando a detestável N-word por slave (escravo), o que é meio esquisito. Acho que as professoras têm mais é que conversar com os alunos e mostrar que aquele tipo de comportamento e linguagem, tão comum na época, hoje é visto como inaceitável -– uma prova de que o mundo evoluiu um pouquinho, ficou menos intolerante.
Eu tinha mais ou menos essa opinião acerca de Caçadas de Pedrinho até ler a maravilhosa carta da escritora Ana Maria Gonçalvez pro Ziraldo. Fiquei chocada. Não imaginava que o Lobato era tão racista assim, a ponto de lamentar que a Ku Klux Klan não existisse no Brasil. E fiquei com muita raiva dele, pra ser franca. Depois de conhecer seu projeto eugenista, será impossível olhar pros seus livros com os mesmos olhos. Lógico que a obra deveria ser independente de seu autor, mas não é. O jeito como você encara Polanski vai afetar o jeito que você vê seus filmes -- pô, vai afetar até sua decisão de ver ou não os filmes!
Só que
tem outra coisa, no caso do Lobato: naquela época um monte de gente era eugenista. A ciência como um todo era eugenista. É bobeira achar que só os nazistas malvados é que acreditavam nisso de melhorar a espécie. Eles copiaram essa ideia dos cientistas britânicos e americanos! Então, assim, racionalmente eu sei que não deveria me chocar por Lobato ter sido eugenista. Mas choquei. E, se eu fosse professora primária e tivesse a opção de escolher os livros que estudar com a minha turma, não usaria Lobato (o Alex escreveu um post interessante sobre isso).
Pensei agora em O Nascimento de uma Nação. Conhecem? É um grande filme de 1915, um épico fabuloso do Griffith, o pai do cinema americano. Foi o filme mais lucrativo de todo o período silencioso, aclamado por crítica e público. E o filme é lindo e inovador, com excelente fotografia, montagem, direção, atuações (tem a Lilian Gish), enfim, um filmaço. Com um pequeno, minúsculo detalhe: deve ser o filme mais racista que já vi na vida. Os heróis do filme são homens da Ku Klux Klan (inclusive um primeiro título foi The Clansman, e a organização racista usou o filme para recrutar novos filiados durante mais de meio século, como propaganda mesmo). Os negros que aparecem no filme (todos atores brancos com o rosto pintado de negro) são violentos e sexuais, um perigo pras donzelas brancas, naquele velho clichê que as mulheres brancas precisam dos homens brancos para salvá-las dos homens negros. E aí? Como passar o filme hoje nos EUA? Não há a menor dúvida de que ele seja descaradamente racista. É como se fosse a versão americana de O Triunfo da Vontade (da Leni Riefenstahl falando bem dos nazistas, num filme tecnicamente perfeito, mas, ahn, sabe, nazista).
Não consigo vislumbrar alguém fazer um festival de cinema popular e incluir Nascimento. Quando morei em Detroit, vi que as empresas promoviam alguns festivais de cinema em praças nos fins de semana. Teve um mês (fevereiro) que era da História Negra, então passaram alguns filmes com essa temática, como A Cor Púrpura e Tempo de Glória. Imagina se alguém pensaria em passar Nascimento de uma Nação! Nunca. Ainda mais numa cidade com 80% de população negra. Mas seria realmente muito ofensivo em qualquer lugar. E aí, o que você faz? Você esquece um dos filmes mais marcantes do cinema por ele ser racista? Você passa o filme, mas fala e escreve que ele representa uma época que, graças a zeus, não existe mais? E os pais, deveriam mostrar Nascimento pros filhos? Poderia ser passado nas escolas? Como os alunos, professores e funcionários negros se sentiriam ao ver um filme que louva a Ku Klux Klan? Nascimento é tão canônico pro cinema americano quanto Sítio do Picapau Amarelo é pra literatura infanto-juvenil. A diferença é que os americanos começaram a debater a (in)adequação de Nascimento décadas antes da gente fazer o mesmo com Lobato. E é muito complicado decidir como agir.
Mas um primeiro passo que parece óbvio, mas não é, é simplesmente admitir que essas obras são, sim, racistas. E parar de reclamar do "politicamente correto" que quer censurar obras tão importantes. Se ser politicamente correto é querer discutir e, por que não?, condenar obras que ficaram toda uma vida sem serem contestadas, então, sim, sem dúvida, eu sou politicamente correta. E o que quer o pessoal que usa o politicamente correto como palavrão? Continuar no seu direito inalienável de ofender as minorias? É essa gente que quer censura. Essa gente que defende que, só porque um troço faz parte da "tradição", não deve ser discutido. Sabe, não é por que o Sítio do Picapau Amarelo embalou a sua infância e que você não é racista porque até tem um amigo negro que gostou do livro que a obra não seja racista. Então eu pergunto: quem não quer o debate? Quem está censurando quem?




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