DESCENDENTES DE DONOS DE ESCRAVOS
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DESCENDENTES DE DONOS DE ESCRAVOS


Quando cheguei em Fortaleza, em fevereiro, um casal de conhecidos do maridão, muito gentil, nos levou a um breve tour pela cidade e à famosa Praia do Futuro, onde almoçamos num restaurante. O barulho da música ao vivo era insuportável, mal dava pra conversar direito, e seguiu-se aquela divisão “natural” que eu tanto detesto: mulheres falando de um lado, homens do outro. E a senhora bem de vida pôs-se a dizer coisas inacreditáveis (porém não inéditas) pra mim: “Esse Bolsa-Família é uma vergonha, devia ser proibido. Como que pode? Ficam dando dinheiro pra pobre, e aí o pobre não quer mais trabalhar. Hoje em dia está muito difícil arranjar empregada! Ninguém quer, e olha que eu pago bem, salário mínimo!”.
Esse tipo de lamento da classe média (já que ninguém no Brasil se considera rico) é comum e não está restrito a uma só região. É geral. A classe média de qualquer lugar do mundo, e a nossa em particular, adora reclamar de barriga cheia, e nisso é idêntica à classe média de outros países pobres ou em desenvolvimento, como a da Argentina, da Venezuela, Guatemala, Honduras... Igualzinha, só muda a língua. Eu poderia argumentar que é um bom sinal que menos gente queira fazer trabalho escravo de empregada doméstica (salário mínimo, se tanto, pra dormir no emprego e servir a sinhazinha a qualquer hora do dia e da noite?!). Poderia argumentar que gente que lava cueca de marmanjo que não é seu fiho ou marido teria muito mais motivo pra se revoltar que a pessoa que diz que empregadas não são de confiança. Poderia argumentar que o Bolsa-Família é um dos programas de distribuição de renda mais bem-sucedidos do mundo, hoje copiado em várias cidades, como Nova York, por exemplo. E acho que falei, ou melhor, gritei, porque a música era ensurdecedora, tudo isso pra minha nunca-seremos-amigas-dona-preconceituosa. Mas não adiantava, a cabeça dela já estava feita: pobre não presta, e o governo ainda fica dando meu dinheirinho suado pra esses vagabundos! O bom das eleições é que hoje todo mundo é, ou diz ser, totalmente a favor do Bolsa-Família. O pessoal que passou os últimos anos criticando (“o maior esquema de compra de votos do planeta”, disse um adversário) e exigindo o fim do programa agora até luta por sua paternidade, e jura que vai duplicá-lo. Hoje o Bolsa-Família é uma unanimidade no país, pelo menos por algumas semanas. Graças às eleições! Viva a democracia!
Mas nem era sobre isso que eu queria falar. Era sobre as empregadas mesmo. 17% das mulheres que trabalham no Brasil são domésticas. É um batalhão, muita gente, 7,2 milhões, pra ser mais exata, e só perde em tamanho pra uma outra categoria, a dos trabalhadores rurais (16 milhões). Por lei, toda empregada doméstica deve ter carteira assinada, férias, 13o, e recolhimento de INSS para que possam se aposentar no futuro. Isso é por lei, certo? E a classe média brasileira, que é quem tem condições financeiras de ter empregada, cobra sempre o cumprimento da lei. Pois bem, sabe quantos patrões cumprem essa lei? 26%. Ou seja, três quartos dos empregadores não dão o mínimo que a lei obriga pra sua empregada, e ainda dizem, suponho, que pobre é desonesto.
Outra coisinha que eu sei é que nos países ricos é raríssimo ter empregada. A classe média limpa sua própria casa. Isso porque é caro ter uma empregada, já que a diferença entre o salário de um engenheiro ou de um médico, nesses países, não é abismal em comparação ao da empregada. E é por isso, inclusive, que esses países são desenvolvidos ― porque a distribuição de renda é justa. O quê, tem gente que pensa que é por eles serem loiros de olhos azuis?! Tolinhos!
Eu já tive empregada. Bom, não eu, mas meus pais. E tenho a impressão que uma das causas do meu esquerdismo desde criancinha é que eu odiava o jeito que minha mãe tratava as empregadas. Falo delas no plural porque foram muitas; afinal, elas raramente ficavam muito tempo em casa, pois minha mãe vivia brigando com elas, dirigindo-se a elas com sarcasmo. Lembro que era uma cena comum meu pai chegar do trabalho e ouvir da empregada que ela estava se demitindo, já que não suportava minha mãe. E meu pai tinha que insistir, pedir desculpas em nome da minha mãe, jurar que aquilo não se repetiria. E lógico que, na semana seguinte, era a mesma coisa. Eu me sentia muito mal com aquilo.
Uns cinco anos atrás li Eu, Rigoberta Menchú, testemunho da ativista indígena da Guatemala e Prêmio Nobel da Paz em 1992. A parte do livro que mais me chocou ― mais do que ela narrando como membros da sua família foram torturados e mortos por uma elite que se recusava a cumprir os direitos dos índigenas (mais da metade da população), e mais do que ela contando algumas tradições não muito lisonjeiras da sua comunidade ― foi aquela em que ela, depois de ter sua lavoura destruída, precisa ir pra cidade grande ganhar dinheiro para sustentar sua família. E qual a única ocupação para uma mulher de outra cor que não branca e sem educação formal? Empregada doméstica, por supuesto. A vida de Rigoberta no curto espaço de tempo em que ela é servente de uma família de classe média é um pesadelo. A patroa é uma megera que faz questão de lembrá-la diariamente como ela, Rigoberta, é imprestável. E eu lia e pensava na minha mãe.
Nunca entendi o prazer que mulheres da elite têm em humilhar as subalternas. Será que elas se sentem ameaçadas, por terem outra mulher em casa? Ou, humilhando as inferiores, elas sentem-se superiores, e apagam memórias de um passado nem tão diferente ou distante? Confrontei minha mãe depois de ler Rigoberta. Perguntei por que ela tinha sido cruel com as empregadas, na época em que podia se dar ao luxo de tê-las. Ela melhorou muito. Em outros tempos, teria simplesmente negado sua crueldade, ou culpado as empregadas de merecer aquilo. Desta vez ela admitiu que as maltratava, mas não pôde explicar os motivos. Continuo sem entendê-los.
Já que abri o texto com uma anedota sobre preconceito, fecharei com outra. Em Joinville, eu dava aula de inglês pra uma turma de adolescentes ricos, opa, classe média, esqueci que no Brasil não existem ricos. Numa das aulas passei algumas estatísticas pra eles. Uma era que o salário de uma mulher negra é um quarto o de um homem branco. É essa a estatística: um homem branco ganha quatro vezes mais que uma mulher negra no nosso país. Meus adolescentes acharam essa informação a coisa mais natural do mundo, e me responderam, na lata: “Mas é claro, né, teacher? Negras são todas empregadas!”. Eles não paravam pra pensar por que tantas mulheres negras são domésticas, ou por que o salário de uma doméstica tenha de ser tão mais baixo que o de outras profissões. Pra eles, era assim que as coisas eram, e por eles tava bom. Isso foi dez anos atrás, e ninguém falava em Bolsa-Família, se é que isso existia. Mas posso apostar que agora eles são contra e reclamam da dificuldade que é encontrar uma empregada. Quer dizer, agora não, que agora é período eleitoral. E durante o período eleitoral a classe média gosta de pobre. Ou pelo menos dos seus votos.




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