Em Detroit, arrastei o maridão pra uma conferência chamada “Black America” principalmente porque um dos palestrantes era o John Singleton, o cineasta americano negro mais importante depois do Spike Lee, e único diretor negro a ter sido indicado a um Oscar, autor de “Boys'n the Hood – Os Donos da Rua” e “Duro Aprendizado”. Antes do início das palestras, o maridão, muito ingênuo, me perguntou se “América Negra” referia-se a todos os negros de todas as Américas. Eu só pude rir e responder: “Você tá brincando, né? Americanos nem sabem que existem outras Américas!”. Dito e feito. Na conferência, no máximo, muito de vez em quando, alguém mencionou a África. Mas ficamos impressionados. Primeiro veio um jovem narrar algo que lhe aconteceu há poucas semanas: ele foi baleado na perna por um outro rapaz negro. O mestre de cerimônias quis saber por que um irmão atiraria num outro irmão (ninguém questionou por que o “brother” atiraria em qualquer ser humano, ou o que o irmão estava fazendo com uma arma, em primeiro lugar). O conferencista seguinte, um muçulmano negro de turbante, explicou que só existe um deus, Alá, e atacou o governo por banir orações das escolas, as mulheres, que são em geral umas vadias que não sabem educar os gloriosos filhos da nação negra, as pessoas que não querem que batamos nos nossos filhos, pra que eles aprendam o que é certo e errado, os homossexuais, que são imorais e vão arder no inferno, e por aí vai. E a platéia, toda negra, várias mulheres, aplaudia e gritava “Amém!”. Na hora das perguntas, indaguei: “Qual a diferença entre os muçulmanos negros e os fundamentalistas cristãos brancos?”. O sujeito de turbante revoltou-se com a minha pergunta, disse “Nenhuma!”, e passou a me atacar por eu não compreender que as mulheres são inferiores aos homens, porque Alá quis assim. Em seguida veio um jovem presidente de alguma fraternidade negra, que, antes de começar, manifestou apoio a 100% do que o do Alcorão disse. E acrescentou que a culpa da sociedade negra estar tão mal das pernas é das feministas, que pregam que a mulher não precisa do homem pra criar os filhos. Mais adiante defendeu que os negros de Detroit deveriam boicotar lojas que não fossem de negros, e xingou os imigrantes árabes por, apesar de não poderem beber, possuírem lojas de bebidas que vendem esse veneno pros irmãos. E por aí foi. O John Singleton em si teve um discurso um pouco menos segregacionista e machista, mas bastante recheado de violência – que não é só marca registrada do homem americano negro, mas do homem americano, ponto.
Estamos perplexos até agora. Não existe a menor chance de integração ou de colaboração entre esses negros da conferência e outras minorias (mulheres, gays, hispânicos, etc). Assim como os brancos, esses negros que vimos precisam muito de um “outro” pra demonizar, e o mais à mão nem é o branco, mas a mulher negra. Se um desses caras chegar ao poder, estará prontinho pra expulsar os imigrantes ilegais e construir um muro pra barrar os mexicanos. É de chorar.
Mistura Mal-Feita
Não são apenas os negros que vivem segregados. Há uma comunidade num subúrbio chamado Dearborn que carrega a fama de ser a maior colônia árabe for a do Oriente Médio. Será que é a maior que a libanesa em SP? Não sei, mas é vista como a mais populosa dos EUA. Então diariamente vejo mulheres com o rosto coberto por véus, e só posso pensar: deve ser barra ser árabe nos EUA. Depois do 11 de Setembro, a internet foi tomada por milhares de pedidos de boicote a restaurantes árabes. Mais de um em Dearborn quase fechou, porque os emails alegavam que os funcionários muçulmanos aplaudiram a queda das Torres Gêmeas. Tudo lenda urbana. Os árabes daqui não se consideram apenas árabes: eles se auto-intitulam árabes-americanos, e querem ter os benefícios que todos os americanos (bem, os brancos) têm. Todos com quem falei são muito simpáticos e não só amam o Brasil, como têm algum parente morando lá. Mas, no nosso país tropical, não me lembro de tantas mulheres usando véu. Aqui parece que são todas, e é esquisito ver moças maquiadas, falando inglês fluentíssimo cheio de gírias, e cobrindo o rosto. É besteira proibir véus como fizeram na França; por outro lado, o véu soa como uma barreira à integração, uma lembrança constante que a pessoa não é daqui. Pensando bem, aí é que está: ninguém parece querer se integrar nesta sociedade. Essa imagem que vendem de “melting pot”, de um caldeirão onde centenas de religiões, raças e culturas se misturam, não existe. Quer dizer, existe – no Brasil.