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ESTUPRO EM STEUBENVILLE, PLENO LUGAR QUALQUER
Aconteceu em agosto. Uns cinquenta adolescentes em Steubenville, Ohio, se reuniram pra fazer festa. Muitos estavam se despedindo –- iriam estudar em faculdades distantes da sua cidade falida de 18 mil habitantes, falida devido à indústria de mineração e aço em crise.Para compensar a situação econômica da cidade, os moradores investem pesado em esportes. Os jogadores de futebol americano das escolas são idolatrados. Se você é um garoto adolescente e quer ser popular no rígido sistema hierárquico escolar americano, você precisa ser um atleta, um jock. Claro, isso só vale para rapazes. Às meninas, resta a opção de torcer pelos atletas, de ser a famosa cheerleader.Mas só ser um jock não basta. Você precisa agir dentro do código de conduta dos garotos populares: sair com montes de meninas, beber, farrear, cometer trotes, contar piadas de estupro. Tudo isso vai te preparar pra mentalidade de frat boy assim que você for pra uma universidade. Aqui no Brasil tem muito rapaz de classe média imitando o american way of life. Já contei o caso espantoso que aconteceu em Silsbee, pequena cidade do Texas. Uma garota foi estuprada durante uma festa por um desses atletas-astros. Ela o denunciou e, antes do caso chegar aos tribunais, o acusado continuou sua vida normal, brilhando nos esportes, e ela tentou continuar sua vida, sendo cheerleader. Só que chegou um momento em que ela teve que torcer especificamente pra que seu estuprador acertasse uma falta no basquete. Ela devia gritar “Ponha pra dentro”. E se recusou. Quando ela fez isso pela segunda vez, num outro evento, a equipe a expulsou. E esse nem é o fim de uma história escandalosa. A moça e seus pais decidiram processar a escola, e perderam. Foram condenados a pagar 45 mil dólares em despesas legais por ter entrado com um processo fútil.O atleta-estrela acusado só foi indiciado um ano após o estupro. Declarou-se culpado por um crime menor (agressão, não estupro) e foi condenado a prestar serviços comunitários e fazer aulas de controle de raiva. Ah sim, ele teve prejuízo financeiro: 2,500 dólares de fiança.Já contei também um caso que aconteceu em Joaçaba, SC, em 2008. Uma menina de 15 anos foi a uma festa, passou mal, foi ao banheiro, e um rapaz foi junto e aproveitou para estuprá-la. Enquanto amigos esperavam sua vez de estuprá-la, eles filmaram a cena com seus celulares. Alguém subiu pra interromper o que estava acontecendo e levou a moça pra sala. Poucos dias depois, os rapazes puseram o vídeo na internet. A polícia passou a investigar o caso. Nos comentários sobre a notícia, internautas diziam “Eu queria tá era lá comendo essa vagabunda. Onde já se viu uma safada de 15 anos sendo estuprada?” e “É claro que não foi estupro, estão querendo acabar com a vida daqueles meninos”. Dois anos depois, o acusado foi condenado a 7,5 anos de prisão em regime semi-aberto.E tem o caso New Hit. Na mesma época de Steubenville, em agosto do ano passado, na cidadezinha baiana de Ruy Barbosa, duas adolescentes de 16 anos entraram no ônibus de seus ídolos para pedir autógrafos e tirar fotos. Ambas foram estupradas. Mesmo com laudos confirmando o estupro, os integrantes do New Hit (que não são atletas, mas são celebridades) pagaram fianças e estão soltos para fazer shows por todo o país. O julgamento começou em fevereiro e foi adiado para setembro. Enquanto isso, os shows seguem.Mas voltando a Steubenville, Ohio. Entre os cinquenta jovens que se reuniram aquela noite na pequena cidade estava uma menina de 16 anos, de uma escola menor, e dois atletas adolescentes, Trent e Malik. Ela bebeu demais. Várias testemunhas relatam que a viram vomitar diversas vezes, que ela não falava coisa com coisa, que precisava de apoio para andar. Durante cerca de seis horas, ela foi levada de festa em festa por Trent e Malik. Em alguns momentos, eles a carregaram pelos pés e pelas mãos, como se ela fosse um brinquedo particular. A foto ao lado é uma das muitas que foram tiradas. Segundo testemunhas, Trent e Malik removeram a roupa da garota inconsciente, enfiaram dedos em sua vagina, tentaram obrigá-la a fazer sexo oral (ela estava incosciente demais pra isso), urinaram em cima dela. Uma das fotos mostra sêmen na menina. Ao mesmo tempo, Trent fez vídeos e divulgou imagens para sua timeline. Alguém perguntou no Twitter se ele tinha transado com ela, e ele respondeu “Yep”. Malik também disse que ela havia feito sexo oral nele. Depois, Trent tuitou “Eu deveria ter estuprado ela já que todo mundo acha que a estuprei”.
No dia seguinte, assim que a história começou a se espalhar, Trent pediu que seus amigos mentissem. “Diga que ela foi pra sua casa e desmaiou lá”, tuitou ele prum colega. Pediu também que eles apagassem os tweets e as fotos. E mostrou confiança, porque seu treinador estava fazendo piadas com o caso, então pra que se preocupar? Enquanto isso, numa sociedade de padrão duplo, a menina enviava mensagens também: “Juro por Deus, não me lembro de ter feito nada com eles”, e “Eu não estava sendo uma vadia. Eles tiraram proveito de mim”.
Outros atletas também participaram. Um deles escreveu “A música da noite definitivamente é Estupre-me do Nirvana”, e “Algumas pessoas merecem que se mije nelas”. Trent deu RT.
Pelo menos algumas pessoas não viram graça naquilo. Uma blogueira local de 45 anos que escreve sobre crimes tirou prints das fotos e dos tweets e perguntou: “Que pessoa normal considera que postar o estupro brutal de uma jovem é algo que deve ser compartilhado com os amigos?”. E ainda, dirigindo-se a Trent e Malik: “Não, vocês não são astros do esporte. Vocês são criminosos andando por aí por tempo limitado”. Alguém começou uma petição exigindo que a escola e o técnico pedissem desculpas à vítima. E o grupo Anonymous fez um belo trabalho de pressão, culpando quem se deve -– os estupradores. Se não fosse toda a mobilização da internet, pode ter certeza que o caso nunca teria ido a julgamento. Mas foi.
E agora saiu a condenação: Malik, 16, foi julgado delinquente (culpado, para menores de idade) e vai ficar na detenção juvenil por pelo menos um ano, talvez até chegar aos 21. Trent, 17, ficará um ano a mais por distribuir pornografia infantil. Ambos planejam recorrer. O promotor avisou que pretende indiciar também outros participantes que viram tudo e não fizeram nada naquela noite (o que me parece semelhante ao que é mostrado no filme Acusados, que é pré-internet).
Preciso mesmo dizer como este caso escabroso está sendo recebido? Não, não preciso. Você já sabe. Porque é o mesmo jeito que todos os casos de estupro são recebidos: culpando a vítima. Isso faz parte da cultura de estupro. Há compilações de tweets dizendo que quem deveria ir presa é a menina (por ser menor de idade e beber), que óbvio que ela quis, que ela é uma vadia, que está arruinando a vida de dois ótimos rapazes. Nada que você não viu antes.
A própria CNN, ao cobrir o caso, caiu nessa de “coitadinhos dos atletas”. A reportagem não dedicou uma só palavra à vida da vítima, mas muitas às vidas arruinadas dos dois adolescentes. Este ponto de vista, inclusive, é preponderante na cultura de estupro. Dois anos atrás, o Onion fez um vídeo sarcástico mostrando a superação de um atleta diante de uma acusação de estupro: “Ele se recusa a deixar que o que ele fez à garota que ele estuprou o defina”.
Não sei nem quais foram as piores coisas que li sobre Steubenville. Uma que me deprime bastante é o tweet afirmando que a condenação é injusta, porque quase todas as pessoas fariam a mesma coisa numa situação dessas. E eu não consigo acreditar nisso. Outra foi um rapaz americano dizendo que os dois adolescentes não tinham nada que pedir desculpas no tribunal. Segundo o cara, “A menina é que deve pedir desculpas, por colocá-los naquela situação”.
Qual situação seria essa? Beber até cair? Vestir roupa curta? Estar perto de machos que (pensar assim é que é misandria) não conseguem se controlar? Existir?
O que será que Steubenville, Silsbee, Joaçaba, Ruy Barbosa, e tantas outras cidades no mapa-mundi têm em comum? O que faz delas tão especiais? A verdade é que nada. Célebres casos de estupro aconteceram lá, assim como acontecem diariamente em todo lugar. É importante entender que Malik e Trent não são psicopatas num planeta cheio de flores, paz e passarinhos. Eles são parte de um universo que cria estupradores. Um universo que ensina que não se pode perder uma só chance de provar sua masculinidade. E que não é estupro transar com uma menina inconsciente que não consegue nem ficar em pé, quanto mais consentir. E que qualquer coisa que esses rapazes fizerem à menina inconsciente será culpa dela.
Pois é. Agora olhe nos meus olhos e me diga seriamente que cultura de estupro não existe.UPDATE: Leitorxs me informaram que o crime de Steubenville pode ter sido premeditado. Um mês antes do estupro, o ex-namorado da vítima prometeu: "Ninguém rompe com Cody Saltsman, vou arruinar essa vadia". Cody era melhor amigo de Trent. O mais chocante é que Cody (ainda) não foi indiciado!
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