Editorial do sítio Vermelho:Uma pista importante sobre a relação entre a burguesia paulista e a repressão política durante a ditadura militar foi revelada há poucos dias pelo Arquivo Público do Estado de São Paulo; ela consta de reportagens publicadas no jornal O Estado de S. Paulo pelo jornalista Roldão Arruda neste domingo (17) e nesta segunda-feira (18).
Foram descobertos, no acervo do antigo Dops de São Paulo (que está sob a guarda do Arquivo Público do Estado) seis livros da portaria do prédio onde funcionava aquele centro de torturas, sob a direção do famigerado torturador Sérgio Paranhos Fleury. Os livros contêm o registro dos visitantes que frequentaram aquele prédio temido na década de 1970.
A própria reportagem ressalta que a cobertura apresentada naqueles livros é precária, com lacunas que devem ser levadas em conta na avaliação das informações contidas neles. Mesmo assim sua importância não pode ser minimizada, e a Comissão Estadual da Verdade Rubens Paiva já anunciou que vai investigar as pistas registradas nos livros da portaria do Dops de São Paulo.
As pistas podem conduzir a revelações graves sobre a intimidade de empresários paulistas, agentes norte-americanos cobertos pelo manto do Departamento de Estado, e a repressão.
Nos livros da portaria do Dops de São Paulo estão registradas visitas cuja frequência que pode mostrar muito a respeito dessa intimidade. Por exemplo, o capitão do Exército Ênio Pimentel da Silveira (denunciado como o torturador que usava o nome de guerra de Doutor Ney) esteve lá 41 vezes entre março e outubro de 1971 – isto é, cerca de uma vez por semana. O capitão (depois major) Ney era um dos principais auxiliares de outro notório torturador, o comandante do DOI-Codi paulista e então major Carlos Alberto Brilhante Ustra.
Outro visitante assíduo foi Geraldo Resende de Mattos, que a indicação de procedência dizia apenas “Fiesp”. Seu nome consta em todos os livros, de 1971 a 1979; foram duzentas visitas apenas entre 1971 a 1976 – quarenta por ano! A Fiesp desmente ligações com ele mas há indícios de que ele fazia parte dos quadros do Sesi (Serviço Social da Indústria), sediado no mesmo prédio na avenida Paulista, em São Paulo, onde funciona a entidade dos industriais paulistas. Igual frequência teve cônsul norte-americano Claris Halliwell. Em 1971 ele foi à sede do Dops de São Paulo pelo menos duas vezes por mês, denotando um forte e pouco usual, para um diplomata, interesse por assuntos policiais.
Estes fatos precisam ser esclarecidos, e o deputado Adriano Diogo (PT), presidente da Comissão da Verdade estadual, quer saber por que razão “o senhor Claris Halliwell, que aparece identificado nos livros como cônsul americano, ia tanto ao Dops”. O apetite do diplomata para visitar aquele centro de repressão e tortura lança fortes suspeitas de que trabalhasse para organizações como a CIA, dando apoio e assessoria à repressão da ditadura, lembra o presidente da Comissão estadual.
Como um fio num labirinto, estas pistas não podem ser perdidas ou desprezadas. O golpe de Estado de 1º de abril de 1964 resultou de uma articulação entre a classe dominante brasileira (banqueiros, industriais, latifundiários) com chefes militares conservadores e profundamente anticomunistas e agentes da embaixada dos Estados Unidos.
A investigação dos crimes cometidos pela repressão precisa ser a mais ampla possível, desvendando os vínculos que, fortalecidos na conspiração golpista, criaram e fortaleceram os instrumentos institucionais para a ação ilegal contra opositores políticos patriotas e democráticos. Estes vínculos já eram antigos e ligavam, antes do golpe de 1964, empresários e policiais inconformados com a frágil democracia da Constituição de 1946.
Já naquele ano, durante a elaboração da Constituição, surgiram veementes denúncias dessa intimidade perversa. Um exemplo: em Santo André (SP), a Laminação Nacional de Metais, que pertencia à família Pignatari, cedeu um galpão que um delegado de polícia fascista transformou em prisão e centro de espancamento de operários em greve nas fábricas da região.
No início da década de 1970, muitos empresários envolveram-se na organização e financiamento da chamada Operação Bandeirante (a Oban), embrião do que se tornaria, depois, no centro de torturas e assassinatos políticos que teve a sigla mal-afamada de DOI-Codi.
Há denúncias de que o dirigente da Ultragás, Henning Albert Boilesen, envolveu-se pessoalmente com a tortura, havendo inclusive um dispositivo para dar choques elétricos nos presos apelidado de Pianola de Boilesen.
Este é o caso mais notório, mas há informações de que a repressão teria recebido doações de outras grandes empresas. Mesmo frágeis, as revelações dos livros da portaria do Dops paulista são, nesse sentido, uma lamparina na escuridão, que lança uma escassa luz sobre uma realidade de violações criminosas dos direitos humanos que precisa ser posta às claras.
Transformar aquele fiapo de luz nesse holofote é a tarefa que cabe à Comissão da Verdade, e seu presidente Adriano Diogo mostra-se disposto a seguir em frente nesse rumo, expondo ao país o envolvimento de diplomatas dos Estados Unidos e de empresários com o sequestro, tortura e assassinato de democratas que lutaram contra a ditadura.
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