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Fantasia carioca - DORRIT HARAZIM
O GLOBO - 28/07
A História está coalhada de hierarcas que abraçaram guerras para ampliar domínios, conquistar mais poder ou multiplicar as posses. Ultimamente, porém, guerras têm rendido mais problemas do que dividendos. Em compensação, surgiram os grandes eventos para turbinar biografias.
Dependendo do gabarito e das intenções do político, abraçar um grande evento é quase irresistível.
Tome-se como exemplo de uma dessas extravagâncias modernas a realização dos próximos Jogos Olímpicos de Inverno em Sochi, na Rússia. De quem partiu a ideia megalomaníaca de moldar uma região que tem o clima mais quente do país, e o resort de verão mais popular da nação, como sede de Jogos de Inverno? De Vladimir Putin, atual presidente e dono do poder na Rússia pós-soviética desde 1999.
Para Putin, trata-se de um projeto de triunfo pessoal, não importa o tamanho do custo ou as consequências para seus súditos. Quando os Jogos forem abertos em fevereiro de 2014, com transmissão televisiva para o mundo inteiro, ele sorverá um momento de vitória único. Contudo, segundo um relatório recém-publicado com versão em inglês na internet ("Olimpíada de Inverno no subtrópico: corrupção e abuso em Sochi", de Boris Nemtsov), o custo inicial de US$ 12 bilhões já beira os US$ 50 bilhões. O autor estima que as previsíveis adversidades topográficas e climáticas, além da pesada corrupção envolvendo as obras, são responsáveis pelo atraso em cerca de 200 projetos. "Mas no dia 7 de fevereiro tudo estará pronto para a abertura. Só que ao término dos Jogos as coisas começarão a se desintegrar", prevê Nemtsov.
Outro caso com motivações semelhantes é o da candidatura vitoriosa do Qatar como sede da Copa do Mundo de 2022. Noves fora a denúncia de compra de votos para obter a indicação, a dinastia dos al-Thani, que reina nessa monarquia absoluta fincada no Golfo Pérsico desde meados de 1800, quis abocanhar a Copa como parte de um projeto de expansão mundial.
Só que o Qatar, fisicamente, é um deserto humano. Sua população é equivalente à dos peregrinos e curiosos que há seis dias se maravilham com o Papa em Copacabana. E tem temperaturas médias de 40 a 45 graus no verão - o que, para a realização de jogos de futebol, é aberração pura.
Mas o Qatar é rico - tem a maior renda per capital do mundo (US$ 100 mil ao ano), graças ao petróleo e ao gás natural que parecem brotar por toda parte. Além de ricos, os al-Thani são ambiciosos, tecnologicamente audaciosos e imperiais: o clima/ar desértico impede a prática do esporte? Muda-se o clima. A solução projetada é a construção de estádios inteiramente refrigerados ou com ventilação capaz de manter a temperatura abaixo dos 29 graus. Ou alterar o calendário da Copa de 2022 para dezembro, quando a temperatura baixa para médias amenas.
Se tudo correr bem, a insistência dos emires do Qatar em sediar uma Copa do Mundo lhes trará o que ainda não têm: um tipo de exposição mundial que nem o conglomerado de mídia al-Jazeera nem o fenomenal Museu de História Islâmica e ainda menos a base militar americana em seu território conseguiram dar ao país. Se tudo correr mal, protestos não haverá por serem proibidos.
Mesmo em escala menor, a sedução de reger um grande evento pode ser inebriante. A ilusão de ela dar certo também.
Esta semana, a perplexidade estampada nos rostos do prefeito do Rio, Eduardo Paes, do secretário de Segurança, José Mariano Beltrame, e do governador, Sérgio Cabral, ao tentarem explicar o colapso dos serviços públicos na Jornada da Juventude dizia tudo.
Enquanto 1,2 milhão de cordatos peregrinos tentavam adivinhar como funcionava a cidade, o secretário estadual dos Transportes, Julio Lopes, autoridade máxima da pasta do caos, prometia instalar "até 2014" um moderníssimo sistema de sensores capaz de monitorar o movimento nos trens, metrô e barcas. Na véspera ocorrera a primeira falência múltipla de fluxo e filas e desinformação que se repetiria nos dias seguintes.
Falou-se em "falhas", "acidente de percurso". Foi pedida colaboração, paciência e entendimento de que 1,2 milhão de pessoas não podem ser escoadas simultaneamente. Uma forma mais simples de explicar o colapso é que o Rio de Janeiro não tem metrô. Isto é, não dispõe de uma malha de linhas adequada que sirva de meio de transporte principal para a maioria de sua população, e atenda todos os bairros. Por conseguinte, tampouco tem metrô para receber um grande evento com as características da Jornada, que abriga peregrinos em regiões menos favorecidas do município. Imaginar um plano de contingência baseado nos ciclotímicos ônibus cariocas, sem quiosques de informação ou sinalizações adequadas, foi arrogante e desrespeitoso.
Seria um erro as autoridades acharem que a Jornada foi um sucesso como grande evento, exceto por algumas falhas inevitáveis. Sucesso de verdade foram apenas Francisco, o Papa pop, tão carismático quanto político, e a contagiante juventude mundial que enfeitou o Rio. Ambos cativaram a cidade e deixarão suas marcas.
Foi o Rio das políticas públicas que não estava pronto para receber um Papa como Francisco e um evento como a Jornada. Falando em nome dos moradores da Favela de Varginha, que o Papa teimou em visitar, o jovem Rangler Irineu fez um relato do lugar. "Desde que foi anunciado que o senhor viria, nos deparamos com um vaivém de pessoas asfaltando, limpando, cuidando das calçadas, com as caçambas de lixo bem distribuídas, tudo que não fazia parte do cotidiano dos moradores passou a acontecer. Espero que possamos continuar dessa forma", contou.
A Copa do Mundo e os Jogos Olímpicos não passarão nem perto de Varginha, portanto o empenho talvez diminua.
Mas todo grande evento passa pelos aeroportos Santos Dumont e Galeão, pesadelo frequente para usuários rotineiros. Começa hoje o grande êxodo dos peregrinos vindos de fora e este será um teste de grande valia. Como se viu em terra, eles têm uma paciência infinita para enfrentar apagões de serviços públicos com bonomia e cantorias. A tolerância dos torcedores da Copa ou de turistas vindos para as Olimpíadas dificilmente será tão angelical.
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