Minha leitora Liliane pediu pra que eu falasse sobre o Festival de Cannes. Nem sei bem o que falar, já que não acompanhei. Só sei que o último Almodóvar, Los Abraços Rotos (veja o trailer aqui), decepcionou, assim como o último Tarantino, Bastardos Inglórios (algum dia eu cri-critico esses trailers). Li que o Taranta vai voltar com o filme pra sala de edição, pra dar alguns retoques antes que BI estreie nos EUA, em agosto. E sei que A Fita Branca (Das Weisse Band) levou a Palma de Ouro. Todo mundo anda dizendo que é a obra-prima do austríaco Michael Haneke. Não encontrei o trailer, só um pedacinho, com legendas em inglês. É um drama de guerra em preto e branco. Em geral, como sou fã do Haneke (gosto muitode Funny Games, tanto o original quanto o remake americano, e de Caché, e menos de A Professora de Piano e de Código Desconhecido, mas é sempre bom seguir o que ele apronta), vou esperar ansiosamente pra ver A Fita Branca. Mas é melhor esperar sentada. Quem não mora no eixo Rio-SP e não frequenta as mostras das duas cidades não vai ver esses filmes tão cedo. Pelo que li, foi o Lars von Trier que roubou a cena na 62a edição de Cannes. Tá aqui o trailer do seu filme mais recente, Antichrist (pode ver sem susto, que não tem cenas terríveis).
Por “cenas terríveis” eu me refiro a uma em que a Charlotte Gainsbourg (que levou a Palma de Melhor Atriz) corta seu clítoris com uma tesoura enferrujada, bem à vista da câmera. Taí uma boa razão pra eu não querer chegar nem perto do filme. Qual o propósito de incluir uma cena explícita de mutilação feminina? Não pode ser só pra traumatizar a Lolinha e 99% da população feminina. Parece que Cannes tem um júri ecumênio que dá tapinhas nas costas dos filmes que promovem valores espirituais. Este ano o tal júri decidiu dar um antiprêmio a Anticristo, “o filme mais misógino do autoproclamado maior diretor do mundo”. Um cineasta romeno atacou dizendo que, segundo Von Trier, “as mulheres deveriam ser queimadas na fogueira para que os homens possam finalmente se liberar”. Bom, normalmente, não tenho (quase) nada contra o Von Trier. Adoro Dogville e Manderlay, e gosto bastante de Dançando no Escuro e Ondas do Destino. São três ou quatro filmes com mulheres como protagonistas, e ainda que elas sofram o diabo a quatro, não os considero misóginos. Tá cheio de gente que detesta o Von Trier por ele ser assumidamente anti-americano. E ele conseguiu colocar todos os movimentos de defesa dos animais contra ele ao incluir a morte real de um jumento em Manderlay. Esse é o tipo de coisa que o cara faz pra chamar a atenção, como se fosse uma criancinha mimada. Tipo: não é possível que ele não soubesse que matar um animal num filme iria causar indignação. Aí vem com discursinho de que o burro tava velho, ia ser sacrificado mesmo, e a gente come animais, mas não importa. Eu até hoje não perdoo a besta do John Waters pelo que ele fez com galinhas em Pink Flamingos. Minha brilhante leitora Dai mandou um email recomendando uma lista dos filmes mais controversos de todos os tempos. A lista merece um post sozinho, só pra ela. Mas o que a Dai percebeu no ato foi o seguinte: “Lendo aquela lista me dei conta de que a maioria dos filmes 'controversos' (aqueles feitos com a intenção de causar desconforto ou mesmo escândalo, 'causar', como se diz hoje) utilizam o estupro e a mutilação (geralmente de mulheres) como clímax em seu roteiro abusivo. Eu não tenho nenhum elemento para julgar, não li estudos sobre, mas acredito que seja uma tendência (assim como é uma tendência explorar a nudez feminina, o abuso de mulheres, etc) e que haja uma permissividade social, um assentimento do insconsciente coletivo de que se utilizem corpos de mulheres (atrizes) nesses experimentos pela arte”. Ela cita três filmes da lista para exemplificar o seu desconforto: “É interessante descobrir que alguns 'filmes controversos' foram responsáveis por nossa 'iniciação' cinematográfica - como Laranja Mecânica, Veludo Azul e O último Tango em Paris (nunca gostei deste último, aliás, detesto). Ou seja, com eles aprendemos a gostar de cinema pelo cinema, numa fase em que não fazíamos uma reflexão mais aprofundada, e agora cai a ficha de que eles foram criticados por organizações feministas, na época. Foram filmes que eu assisti um pouco antes de me aprofundar em minha formação feminista. Admito que me causava desconforto observar a perversidade com a qual as mulheres eram tratadas. Embora eu siga gostando de Veludo Azul e Laranja, a vontade sempre foi apertar o fast foward naquelas cenas abusivas. Mas o que eu não sabia na época é que aquilo era misoginia, que era concedido aos diretores usar o corpo das mulheres em suas metáforas de dor e miséria humanas”. Cada uma dessas opiniões (fortes) merece um post próprio, e vamos ver se algum dia eu consigo dedicar-lhes a dedicação que merecem. Mas não há dúvida que um tema recorrente entre tantos desses filmes “polêmicos” é o mau trato a que as mulheres são submetidas. Pensa só: se tantos filmes usassem uma outra minoria (por exemplo, negros, gays, judeus) para ser estuprada, mutilada, torturada, espancada, encarceirada e abusada, a gente não diria “Putz... Acho que esses filmes são racistas / homofóbicos / anti-semitas”? Mas como o abuso é contra mulheres, e vivemos numa sociedade em que isso é tolerado e, em alguns casos, até incentivado, passa como “controvérsia”, e viva a arte. Pra não fugir do tema, reproduzo aqui o email que minha leitora silenciosa Lid me mandou: “Acabo de saber que vai ser lançado em breve o filme belga SM Rechter. Não sei se você já ouviu falar: é sobre o caso verídico de uma mulher que convence o marido, um conhecido juiz, a abusar dela sexualmente. O marido a princípio 'não quer', mas ela insiste em ser chicoteada, mutilada, estuprada, etc etc. O casal estava agora na TV holandesa dando entrevista e falando que o cara foi exonerado do cargo de juiz e que é isso mesmo: que ela queria ser abusada e o convenceu a abusá-la. Se o mundo masculino pensa que as mulheres gostam de ser estupradas, agora pode ver uma história verídica no cinema que afima que sim, nós adoramos estupro. E, provavelmente, as que dizem que não amam é porque não querem admitir. Que ódio! Nem sei se esse filme vai ser lançado no Brasil (tomara que não seja mesmo). Mas enfim. Tinha que comentar essa contigo. Fique de olho: SM Rechter, Bélgica, 2009”. (Veja o trailer aqui). Imagina. É tudo mera coincidência.
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