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CRÍTICA: MANDERLAY / Von Trier 2 a zero
Você se lembra de “Dogville”? Eu não poderia esquecer, menos por conta do filme (ótimo, por sinal) que por causa da reação hostil do público joinvilense, que só faltou jogar copo de refri na tela. “Dogville” foi a primeira parte da trilogia com que o diretor dinamarquês Lars von Trier (“Ondas do Destino”, “Dançando no Escuro”) declarou guerra aos Estados Unidos. “Manderlay” é a segunda. E, como era de se prever, esse não chegou aqui. Daí fui vê-lo em Curitiba. E é impressionante como público de cinema de arte é diferente. O pessoal não conversa com o vizinho, nem atende celular.
Enfim, em “Dogville” eu tinha dúvidas se a mensagem era abertamente anti-americana ou anti-humanista, se o que causa a chegada de Grace, a protagonista da trilogia, poderia acontecer em qualquer cidadezinha do mundo. Mas em “Manderlay” não há margem pra dúvida. Além d’a estátua da liberdade ser citada, o que a trama mostra só pode acontecer nos EUA mesmo. Aliás, o Von Trier nunca pôs o pé na terra das oportunidades, e ele é massacrado pelos críticos americanos por isso, que o acusam de falar contra o que não conhece. Numa ocasião ele respondeu, graciosamente, que acha que conhece os EUA melhor que Hollywood conhecia Marrocos quando fez “Casablanca”. Dá pra discordar? Mas a questão é se, depois de fazer esses filmes, ele poderia entrar nos EUA mesmo se quisesse. Acho que não...
Em “Manderlay” ainda estamos na década de 30, e Grace vai parar numa plantação que continua usando escravos, setenta anos depois da abolição. Injuriada, ela decide fazer a diferença e trazer liberdade àquela gente – nem que seja à força, claro. É bem divertido ver o gangster pai de Grace adivinhar o que vai ocorrer com a vila após a abolição: os ex-escravos vão virar assalariados com um salário que não lhes permitirá sobreviver, e serão responsáveis pela própria comida e moradia. Mas tudo bem, porque, se precisarem, os patrões podem emprestar algum dinheiro a juros camaradas. E por falar em camaradas, os patrões mui amigos também pretendem abrir uma vendinha pra que seus empregados possam comprar lá mesmo, sem precisar sair. No fundo Grace, apesar de todas as suas boas intenções, é um pouco como o Bush. Ambos se consideram enviados de Deus. Mas os temas das reuniões que Grace promove são hilários, parecem os dos livros de auto-ajuda e de palestras empresariais. Coisas tipo como lidar com a raiva, sabe?
Pra fazer Grace desta vez, sai a Nicole Kidman, entra a Bryce Dallas Howard de “A Vila”. Olha, não dá pra comparar o currículo da Bryce com o da Nicole, mas não sei se dá pra dizer com todas as letras que a atuação da Nicole é superior. Na realidade, eu mal vi a atuação da Bryce, porque “Manderlay” é tão escuro que eu mais ouvi do que vi os atores. A fotografia de “Dogville” certamente era melhor. Mas “Manderlay” traz mais efeitos especiais, tem até uma fogueira (real, não pintada no chão). Bom, em termos cinematográficos o filme é nulo. E a narração em off do John Hurt, embora irônica, às vezes é povoada por frases compridas demais. E faltou um pouco a interação entre os negros e os ex-donos da fazenda, agora escravos brancos. Mas as idéias são tão inteligentes e provocantes que dá pra perdoar qualquer coisa. No final tudo se encaixa, inclusive o ridículo de decidir a hora através do voto, ou as conseqüências de se destruir a natureza.
Ahn, eu disse que perdôo qualquer coisa? Não é bem assim. Há uma cena brevíssima em que os ex-escravos, famintos, precisam matar um jumento. Você não imagina a polêmica que há em volta dessa cena. Parece que o Von Trier matou um burro de verdade. O John C. Reilly (de “Chicago”) abandonou as filmagens indignado. De acordo com os produtores, era um burro velho e doente que seria sacrificado de qualquer jeito, o que foi feito no filme sem que o animal sofresse, sob a supervisão de um veterinário. O resultado? Milhares de ativistas acusando o Von Trier de assassinar um animal em nome do entretenimento. O diretor acabou tirando quase toda a cena e respondeu aos ativistas: desde quando seus filmes são entretenimento? Mas, realmente, matar um animal pra simular realismo num filme que não dá a mínima pra realismo é ridículo. A guerra contra os EUA podia prosseguir sem sacrifícios, né?
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