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GLOBO, NÃO SOMOS TUAS NEGA
Anteontem eu estava numa clínica, para mais um exame de rotina, e vi na TV o comercial para Sexo e as Negas, minissérie da Globo que estreia semana que vem. Eu nunca tinha ouvido falar. Ao ver o comercial, pensei: "Pode isso? Usar um termo pejorativo como 'nega' pra dar nome a uma série?". Também pensei, admito: "Pelo menos essas atrizes vão ter alguma chance de aparecer na TV", porque é absurdamente baixo o número de pessoas negras que vemos na televisão (uma concessão pública, só pra lembrar pela enésima vez) do país fora da África com a maior população negra. Não fiquei com a menor vontade de ver a série, mas não sou parâmetro: mal vejo TV mesmo.
Pouco depois de chegar em casa, fui checar o que os movimentos negros tinham a falar da série. Me surpreendi com a rápida mobilização. Já há três denúncias sete denúncias de racismo contra a série na Secretaria de Igualdade Racial (inclusive, a Globo foi autuada)! Uma página no Facebook propondo boicote nacional ao programa já tem quase 20 mil curtidas (as fotos das ativistas com cartazes foram tiradas da página). O Blogueiras Negras lançou um ótimo vídeo explicando por que a série é racista, e promete fazer outros 16 episódios de "AsNegaReal". O autor da série, Miguel Falabella, fez um desabafo no FB, e foi respondido por uma carta aberta assinada por vários movimentos negros.
Hoje foi a vez de Cláudia Durans, candidata à vice-presidente pelo PSTU, chamar o programa de "lixo cultural" (leia seu excelente artigo). Ela propõe o boicote não só ao programa, mas aos patrocinadores (que ainda não sei quais são), já que "por trás da opressão está sempre o capitalismo". Diz Cláudia: “'minhas negas' é um daqueles 'bordões' ideológicos típico de machistas e racistas, divulgados particularmente por gente do setor social ao qual o autor se vincula".
A narração do programa (assim como Sex and the City é narrado por Carrie) será de uma mulher branca, Cláudia Gimenez. Só mesmo uma visão muito colonialista pra colocar uma branca pra narrar o cotidiano de mulheres negras.
Tem dez anos que a Globo lançou a primeira novela com protagonista negra, Da Cor do Pecado.
Quer dizer, repare no título. A novela não emplacou, e Thaís Araújo "foi gradativamente perdendo o protagonismo para uma personagem branca", como lembra Cláudia. Mas olha só como as coisas mudaram. Na época, se houve protestos dos movimentos negros (afinal, uma novela com protagonista negra se chamar "da cor do pecado", reforçando o clichê da exploração sexual a que mulheres negras estão submetidas há séculos?!), eles não chegaram à grande mídia.
Ou talvez eu que não estava prestando atenção. De todo modo, é inegável que hoje os movimentos negros são muito mais numerosos e fazem mais barulho. Conquistaram sua voz. E isso é espetacular. Portanto, respeito e confio no posicionamento das mulheres negras que estão protestando contra Sexo e as Negas.
Se há alguma dúvida sobre como a televisão brasileira, em especial a Rede Globo, (mal)trata o negro e, principalmente, a negra, é só ver o excepcional documentário de Joel Zito Araújo, A Negação do Brasil (aqui, da parte 4 pra frente; aqui, inteiro).
Vou contar uma historinha que já contei antes. Quando um filme que eu amo, Silêncio dos Inocentes, foi lançado, em 1991, houve muitos protestos de movimentos LGBT.
No grande thriller, vencedor de cinco Oscars, há um psicopata que sequestra moças gordinhas e tira-lhes a pele para costurar uma "roupa de pele" que ele possa vestir. Ele é retratado como um homem que tentou fazer uma cirurgia de mudança de sexo, mas foi recusado nos testes psicológicos. Numa cena especialmente problemática, ele, em drag, dança diante de um espelho, escondendo seu pênis.
Na época, eu -- que sempre fui feminista e anti-preconceitos -- achei os protestos LGBT ridículos. Afinal, não pode ter um vilão transsexual? Eu fui uma das que repetiu "Ain, só pode ter vilão homem branco hétero agora?" (que vergonha). Levou algum tempo até que eu percebesse que opa, péra lá, quantas personagens trans eu já vi no cinema? Que papel elas faziam? Como eram representadas?
Não foi difícil constatar que, até 91, pouquíssimas personagens trans mereceram ter qualquer espaço nas telas. E as que chegavam lá eram sempre ora vilãs, ora caricaturas, feitas pra que a gente, do alto da nossa "normalidade", risse delas. Não é que houvesse centenas de personagens trans (como há milhões de personagens cis) e, lá no meio dessa multidão, havia uma trans do mal. É que, quando foram fazer uma personagem trans, em Silêncio, optaram por fazer uma trans do mal!
A mesma coisa com mulheres negras, que não aparecem no nosso cinema nem na nossa tevê. Se houvesse bastante representação das mulheres negras na TV, no cinema, em toda a mídia, talvez a minissérie passasse em branco.
Como não há, Sexo e as Negas vem fazer companhia a uma velha tradição racista que ou estereotipa as negras (e os negros também), ou simplesmente as apaga, como se não existissem.
Uma coisa é certa: você nunca vai ouvir falar de uma série chamada Sexo e as Brancas.
E, pra terminar, ontem Vitória Trescastro, estudante de Jornalismo da UFPel, me enviou este texto:
A DESVALORIZAÇÃO DAS NEGAS
A estereotipação da mulher na televisão brasileira é um problema atual e recorrente, e a estereotipação da mulher negra é maior ainda.
Em praticamente todos os programas, a mulher negra é retratada com empregos de baixa renda, usa um português considerado não culto, e só pensa e procura futilidades – não que haja problemas em qualquer um desses itens, mas por que a mulher negra nunca é vista como empresária de sucesso? Por que a mulher negra nunca é vista como intelectual?
No novo programa da Rede Globo, Sexo e as Negas, a discriminação começa no nome: a sexualização da mulher fica mais aparente ainda. Não apenas a mulher negra – mas muito mais ela – sofre com isso. Todas nós, mulheres, sofremos com a desvalorização do nosso gênero na televisão. As mulheres são muito mais vingativas, traídas e traidoras nas telenovelas; e quando há uma libertação sexual, o ato se torna um fetiche masculino – tudo gira em torno do prazer e da ascensão do homem.
O mundo é machista e a TV faz questão de concretizar isso, menosprezando a luta diária do movimento feminista, fazendo as militantes parecerem radicais e tolas. Talvez o lado mais triste seja ver mulheres concordando e reproduzindo o machismo imposto pelos grandes monopólios midiáticos e pela sociedade, baixando a cabeça para o preconceito e concordando que pensam em futilidades.
O problema não é pensar em futilidades, mas estereotipar a mulher como ser inferior, fraco, burro e fútil, que não é capaz de ocupar cargos importantes, que não consegue obter sucesso profissional, e que para ser plenamente feliz precisa de um homem. É visível a falta de entendimento de artistas como Miguel Falabella, que acham que podem ser ativos em um movimento que não lhes pertence.
Esse preconceito do escritor não é de hoje. Se voltarmos um pouco no tempo, o mesmo que hoje que escreve uma série -– ofensivamente -– intitulada Sexo e as Negas é quem inventou o bordão “Odeio pobre”. Falabella é branco e de classe alta, faz parte da “elite cultural” do país, é um formador de opinião que branda aos quatro ventos o seu preconceito enrustido contra as mulheres, os negros, os pobres, e se orgulha de sua "loirice aristocrática".
Fico imaginando por que nenhuma das mulheres “protagonistas” na série (muitas aspas, pois a protagonista é, na verdade, Cláudia Jimenez, uma mulher branca) tem uma profissão de maior poder e prestígio. Às negras, parece dizer a TV, só resta o poder do sexo. É mais uma demonstração de como esse pensamento retrógrado, machista e elitista está incrustado na nossa sociedade.
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