GUEST POST: EU RECICLO MULHERES
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GUEST POST: EU RECICLO MULHERES


Arte e foto Mundano

Selene me enviou esta mensagem com dúvidas que não sei responder. Acho que a dúvida é maior que "o que responder a um aluno que carrega mensagens equivocadas sem se dar conta?". Num mundo preconceituoso como o que vivemos, tod@s nós, em algum momento, nos pegamos pensando "o que dizer num caso assim? Aliás, será melhor dizer alguma coisa?". Espero que vocês possam se identificar com o que conta a Selene e, ao mesmo tempo, dar sugestões.

Sou formada em Artes Plásticas e dou aula de arte em uma escola particular localizada em uma região tranquila na zona leste São Paulo. Sempre digo que tenho sorte de lecionar nessa escola, que me dá total liberdade para que eu possa planejar minhas aulas da maneira que acredito. Há um ateliê bastante amplo com mesas grandes e com os materiais que eu desejar. A escola procura adotar um modo construtivista de ensino, dando ênfase em oficinas ao invés de aulas expositivas, onde se possa aprender cada vez com mais autonomia. Ou seja, os alunos que lá estudam são privilegiados por terem acesso a uma educação pensante, aberta e repleta de propostas interessantes.
Meus alunos têm entre 6 e 11 anos e as turmas têm em média 25 alunos. No ano passado, havia uma turma especialmente mais complicada de lidar, pois concentrava muitas crianças que adoravam falar o tempo todo -– o tempo todo mesmo. Era difícil que alguma proposta os cativasse, e grande parte da aula era tomada pelos pedidos de silêncio e atenção.
Em uma dessas aulas, os alunos realizavam com alarido a proposta do dia. A cada 5 minutos, eu tinha que lidar com problemas “alheios” (digo entre aspas pois encaro que não vivemos em uma bolha e frequentemente surgem questões, desvinculadas à matéria propriamente dita, que não devem ser ignoradas): “professora, não consigo trabalhar com tanto barulho; professora, o fulaninho me mandou calar a boca; professora, alguém escondeu meu material” etc. No meio disso tudo, um aluno se dirigiu até mim e, levantando a blusa do uniforme, me mostrou todo orgulhoso a camiseta que estava por baixo, ostentando os magnificentes dizeres “EU símbolo de reciclagem MULHERES”.
Eu já havia passado por situações parecidas em sala de aula; aquela situação em que você sabe que deve dizer algo muito certeiro, mas fica tão atordoado que acaba deixando passar. Só consegui perguntar duas coisas para ele: se ele sabia o que aquilo significava e onde ele tinha arranjado a camiseta. A primeira pergunta foi respondida com um simples sim e a segunda com “foi minha mãe que me deu, é do Pânico”. Logo perdi a chance de dizer mais alguma coisa. A conversa se dispersou, o garoto rapidamente estava em outra atmosfera e outras questões foram surgindo. Porém, diferentemente de outras situações que não consegui conduzir da maneira que gostaria, essa em especial não me deixou em paz. Naquele dia, voltei para casa com uma forte sensação de derrota. E hoje, meses depois, não passa um dia em que não confabulo uma conversa imaginária com aquele aluno naquele momento. O problema é que por mais que eu imagine essas conversas que não ocorreram, sempre ficam lacunas. Não sei o que diria. Não sei como explicaria para um garoto que, no auge dos seus 9 anos, carrega no peito dizeres que, provavelmente, ele só acha “engraçadinhos”, não tendo noção da dimensão daquilo. Não sei se de fato foi a mãe dele que o presenteou com a camiseta, mas certamente a mãe sabe das roupas que seu filho tem. Ela acha aquilo engraçadinho também?
Lembro que quando eu tinha mais ou menos essa idade, usava dias seguidos a mesma roupa. Não gostava de usar uniforme e uma vez levei uma advertência por ir na escola de calça preta (tinha que ser azul marinho). Eu amava aquela calça e não queria vestir nada além dela. Acredito que a camiseta estava sendo para o aluno o mesmo que a calça preta era para mim –- do contrário ele não iria usá-la por baixo do uniforme em um calor de 30 graus. Por algum motivo, ele se sentia bem carregando aquela mensagem. Como eu poderia instigar um garoto dessa idade a refletir que a frase implica na conotação de que mulheres são descartáveis, algo para ser usado e trocado? Que ele estava simplesmente repetindo um comportamento machista do “pegador”, sendo que ele nem sequer tem maturidade para vivenciar e escolher se quer mesmo ser esse tipo de cara? Que pessoas, homens e mulheres, não são recicláveis justamente por serem pessoas, e não lixo ou objetos descartáveis? Como fazer para que essas colocações façam sentido para uma criança, ainda mais para uma criança que costuma dar de ombros a qualquer coisa que um professor fale?
Sei que situações como essa ainda aparecerão. Quero estar mais preparada para que, da próxima vez, eu possa fazer mais do que perguntar se o aluno tem noção do que está dizendo. É inevitável imaginar esse garoto daqui a uns anos da pior maneira possível e, querendo ou não, deixar passar faz com que essa pior maneira possível seja responsabilidade minha também. É fácil ignorar, achar que é só bobeira de criança, que ele deve estar repetindo comportamentos dos pais e que não necessariamente será igual a eles. Mas não consigo fechar os olhos e achar que as questões impertinentes que surgem dentro do ateliê não me dizem respeito. Portanto, isso é um apelo para que me ajudem a pensar maneiras de conduzir uma conversa quando essas situações surgirem. Acredito que, quanto mais esse assunto for discutido, mais ferramentas teremos para argumentar, seja com um aluno, como foi o caso, ou com quem for.




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