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GUEST POST: MULHERES SOZINHAS E O PÃO NOSSO DE CADA DIA
Num outro post, a querida Tina Lopes, que tem um blog interessantíssimo, fez um comentário que me fez refletir. Ela contou por cima que teve que aturar um monte de homem abusado quando foi "dona" de uma padaria (junto com a sua mãe), no bairro Pilarzinho, em Curitiba. Eu nunca tinha pensado nisso de como atendentes em qualquer negócio devem ter que aguentar cantadas e grosserias o dia todo. No meu breve período numa locadora de vídeo, não me recordo de nenhuma ocasião constrangedora. Então pedi pra Tina escrever um guest post sobre a sua experiência. Esse relato também me deu o que pensar. Lembrei do que li recentemente - de que mulheres se juntam a homens para que estes as protejam de outros homens. Lembrei que, toda vez que o maridão viaja (ele joga torneios de xadrez em outras cidades), a gente não fala pra ninguém que há uma mulher sozinha. Mas também lembrei de como eu era descuidada pra essas coisas. Quando me mudei pra Joinville, quinze anos atrás, o hoje maridão, então namoradão, ainda não tinha certeza se queria sair de São Paulo e morar comigo. Portanto, fiquei alguns meses sozinha (com o maridão vindo me visitar constantemente). Até hoje a vizinhança fala (mal) de uma moça que ousou ser independente e morar só. Porque isso nunca havia acontecido, nem aconteceu novamente. Mas eu não tinha medo. Mandei colocar grades nas janelas, lógico, porque todas as casas tinham. Só que não passou pela minha cabeça que eu corria perigo, já que uma mulher sozinha é vista como disponível, vulnerável, presa fácil. Eu simplesmente ignorava a sociedade que me via como uma alienígena (e, felizmente, sobrevivi). Mas nem sempre ignorar o preconceito é possível, como narra a Tina. A Lola sugeriu que eu contasse minha breve experiência de comerciante – filha da dona da padaria, balconista, caixa e segurança – de padaria. Já relatei várias histórias da Pani no meu blog anterior (que num momento de desamparo, carência e fúria, deletei). Mas a Lola me pede que conte a história do ponto de vista que sempre evitei, o da mulher atrás do balcão. Ali ficamos expostas a cantadas inócuas, outras perigosas, falta de respeito, assédio e até violência mesmo. Bem, a Pani ficava num bairro pobre. O negócio era originalmente do meu pai. Eu, com 19 anos e minha irmã, com 14, estudávamos de manhã e atendíamos no balcão à tarde; minha mãe, professora, trabalhava na Pani de manhã e dava aula à tarde na escola estadual do bairro. Só meu pai ficava lá o dia todo. Mas isso mudou logo, porque o casal se separou, meu pai saiu de casa e ficamos as três mulheres na Pani. Daí muita coisa mudou. As mulheres do bairro, muito pobres, iam lá bater papo com minha mãe, uma “formadora de opinião” porque era professora e recém-separada. Um baita status revolucionário. Já os homens passaram a nos olhar com outros olhos. Nunca houve um assédio sexual daqueles feios, beirando à denúncia e escândalo – mesmo porque todo mundo (do mundo masculino, digo) achava que meu pai ia voltar – mas passou a haver um ar de desrespeito. Representantes de vendas que se encostavam no balcão, languidamente, tentando forçar intimidade. Davam brindes que antes não existiam. Tentavam nos passar pra trás, também, nos pequenos negócios. Mas o maior incômodo estava entre os clientes. Infelizmente, quanto menor o grau de escolaridade, maior a grosseria. Havia mais assédio moral do que sexual, que me lembre. Do tipo “você não sabe fazer contas”; “cadê seu pai pra resolver isso?”; “cadê o dono?” pra baixo. Já os poucos com alguma grana esbanjavam pra impressionar. Resultado. Éramos duras com os homens; a ordem da minha mãe era: mãos limpas e cara fechada. Qualquer sinal de grosseria tinha revide imediato. Minha irmã e eu raramente ficávamos sozinhas ao balcão. Esqueci de contar que morávamos nos fundos da Pani. Enquanto uma entrava pra comer, tomar banho, ver TV, outras duas ficavam na frente, no balcão. Lembro de um senhor que vivia bêbado. Ele ia diariamente à Pani pedir dez pães e, deliberadamente, nos tratar mal. Era o seu momento de desopilar o fígado, imagino. Derrubava coisas no chão pra nos fazer limpar, jogava as moedas de qualquer jeito, e todo santo dia, todo santo dia, perguntava do meu pai. Em troca eu era muito, muito estúpida com esse senhor. Um dia ele apareceu, depois da missa (a igreja ficava a poucas quadras), com um frango assado daqueles de televisão de cachorro (comprado no mercado concorrente, que vendia pão) numa sacolinha de plástico. Pediu os dez pães. A Pani cheia, depois da missa de domingo, e ele reclamando que os pães estavam escuros demais. Ou claros demais, sei lá. Bem alto, pra todos os clientes ouvirem. Na hora de pagar, se enroscou todo com a sacola do frango e não conseguia se desvencilhar, foi perdendo as moedas, derrubando tudo, xingando, falando palavrões, reclamando dos pães. Aí vem e estica o braço por cima do balcão e me ordena: “arruma essa sacola aí”. Eu, pegar no braço nojento, suado, do velho bêbado? Respondi na lata: “o senhor que se arrume, leve esses pães, não precisa pagar, só saia daqui e pare de incomodar. Eu não tenho que encostar no senhor, fazer nada pelo senhor, e tenho certeza de que se meu pai estivesse aqui, o senhor ia era estar se desculpando por atrapalhar todo mundo. Tá pensando que porque aqui só tem mulher, que a gente vai agüentar desaforo?” Não sei se consegui explicar mesmo o bizarro da cena. O homem e seu frango assado, unidos por alças de plástico.Bem, passamos por várias experiências chatas. Tentativas de assalto (foram 3 ou 4), uma briga de porrada – entre homens – dentro da Pani (nada a ver conosco, mas eu levei um soco depois de espantar os brigões a vassouradas), e finalmente, a falência inevitável depois do Plano Collor. Mas a lembrança que ainda me chateia é daquele velho me dando ordens. That's all, folks.
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