GUEST POST: O MACHISMO NA ALTA GASTRONOMIA
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GUEST POST: O MACHISMO NA ALTA GASTRONOMIA


Hamilton Bavutti é um amor (não só ele comprou meu livro, como se deve, como também me deu um livro de ficção científica canadense de presente) e uma pessoa de muitos talentos. 
Ele é professor, farmacêutico pela UEL, mestre e doutor em Ciência de Alimentos pela Unicamp, gastrônomo pela Hotec, e autor deste excelente blog de receitas. 
Ele me enviou este post interessantíssimo que trata do mundo dos chefs, um mundo que ele conhece muito bem.

O modelo de família que me foi ensinado na minha infância, e que eu me recordo desde sempre, é a família cujo pai trabalha fora e ganha o sustento do lar, enquanto a mãe, dona de casa, cuida dos afazeres domésticos. Essa é a ideia sedimentada, machista, de que mulheres são feitas para o tanque e para o fogão, para prover o marido e os filhos com comida quente e roupa lavada e passada. Então me veio a curiosidade de saber: se existe essa visão deturpada da distribuição do trabalho, por que a maioria dos chefs de cozinha são homens, uma tarefa predominantemente feminina na visão patriarcal? 
Quando estava cursando gastronomia, lembro-me de conversar com colegas de turma, que já trabalhavam na área. Todos, sem exceção, falavam de amigos do trabalho, de como o ambiente era viril, de trabalho árduo, de decisões rápidas, de clima quente, de abuso de drogas (sim, todos falavam que a cozinha é um ambiente em que muitos utilizam drogas, lícitas ou ilícitas, sendo as mais comuns a cocaína e o álcool -– mas isso é assunto para outro post), de muitos empregados nordestinos (a cozinha dos restaurantes de SP parece absorver grande parte da mão de obra vinda dos estados do nordeste, todos cabras-machos). Nunca ouvia falar de mulheres na cozinha. Quando existia uma, era responsável pelo caixa, ou trabalhava como garçonete.
Segundo o chef Fernand Point, o grande restaurateur considerado pai da cozinha francesa moderna, “Somente os homens tem a técnica, disciplina e paixão capazes de transformar o ato de cozinhar em arte”. Sob sua ótica, mulheres seriam incapazes de elevar a cozinha ao nível da arte. Sim, talvez porque elas tenham cérebros menores, ou não aguentariam o ritmo extasiante de trabalho devido aos seus corpos frágeis e delicados. 
Muitas vezes, para destruir paradigmas, mulheres sentem dores (literalmente, carregando panelas, fogões e fornos pesados sem pedir ajuda), e agem e gritam como homens, suprimindo emoções estereotipadas de mulheres frágeis. O que era para ser uma arma contra o preconceito acaba por rotulá-las muitas vezes como “bitchy”, reclamona, minando sua autoridade. 
Deve-se lembrar também que o cargo de chef de cozinha abrange não somente os serviços de preparo de alimentos, mas também de controle de fornecedores, compra de mantimentos, administração de pessoal, e pagamento de salários -- tarefas administrativas árduas melhor desenvolvidas por homens, na “singela” opinião de chefs ouvidos em várias pesquisas. 
Essa visão simplista e preconceituosa ecoa ainda nos dias de hoje e, não raro, o que se vê nas cozinhas da maioria dos restaurantes do Brasil e do mundo é a presença maciça dos homens na liderança dos serviços da cozinha e, as mulheres, geralmente subordinadas a eles, no papel de sous-chef (chef auxiliar) e cozinheiras ou auxiliares.
Somente alguns papéis dentro da cozinha parecem, segundo a visão dos chefs homens, ser melhor executados por mulheres. É o caso das sobremesas e massas. A “mão fria” das mulheres não exerceria uma influência negativa sobre as massas; por outro lado, a feminilidade e a “doçura” inerentes da mulher seriam de muita utilidade na confeitaria e na produção de sobremesas, que exigem um toque sutil e delicado e uma percepção de cores mais afinada. Essa visão sexista parece ser predominante entre os chefs de cozinha. 
O ponto de vista único de todos os chefs de cozinha homens, e que eles reconhecem, é que as mulheres são mais limpas para trabalhar, mantendo suas áreas e espaços dentro da cozinha com melhor aparência e menor contaminação. 
Obviamente, esta visão sexista está longe de ser uma realidade somente das cozinhas do mundo. Áreas como aviação, segurança pública, cargos de alto nível empresariais, construção civil, robótica, entre outras tantas áreas, ainda são redutos machistas onde a presença da mulher é pequena e controversa.  
Felizmente esse panorama está mudando. Nomes como Julia Child, Delia Smith (chef americana), Cristeta Comerford (primeira mulher a chefiar a cozinha da Casa Branca, em Washington), Benê, Carla Pernambuco (Carlota), Roberta Sudbrack, Bel Coelho (Dui), Helena Rizzo (Mani), Carole Crema (La Vie en Douce), Nadia Santini (Dal Pescatore – Itália), Elena Arzak, Morena Leite (Capim Santo), Gabriela Barreto (Chou), Paola Carossella (Arturito), Deepali Bavaskar, Raquel Blaque, entre tantas outras, destacam-se em seus papéis de liderança, bons serviços prestados, qualidade de seus restaurantes e sucesso empresarial. Porém, de um total de 140 restaurantes ranqueados com as famosas estrelas Michelin, apenas 11 são chefiados por mulheres. Ainda.

Meu comentário: Obrigada por este espantoso guest post, Hamilton! Eu sabia que a profissão de chef é predominantemente masculina, mas não tinha a menor ideia do consumo de drogas entre chefs (quero um post!), nem dessa besteira da "mão fria" e a doçura das mulheres serem ótimas para a confecção de sobremesas! 
Parece que o lugar da mulher é na cozinha... exceto se a cozinha for um espaço remunerado. De repente, todas as mentes que juram que cozinhar e cuidar da casa estão nos genes das mulheres (biologia supera ideologia blá blá blá) encontram uma exceção. Quer dizer que o talento para cozinhar só está nos genes das mulheres se for pra elas manusearem panelas pra sagrada família, mas não pra outras pessoas? Aham, faz sentido... E essas mesmas mentes brilhantes não diziam que homens servem para caçar mamutes e trazer o bacon pra casa, e mulheres pra preparar os alimentos? Putz, como os intrépidos caçadores foram parar cuidando dos fogões das cavernas?
De acordo com este artigo, apenas 10% dos chefs no mundo são mulheres. E elas recebem 17% menos que os chefs homens, na mesma função. No entanto, quando se fala em sobremesas, as mulheres são 77% dos profissionais. Como, se a desculpa que se dá para que haja tão poucas chefs mulheres nas cozinhas industriais é a longa jornada de trabalho e a panela pesada? Fazer sobremesas é mesmo um piece of cake, essa facilidade toda, que até mulheres, essas eternas incompetentes, conseguem realizar?
Acho que a explicação é que vivemos num mundo em que prevalece a divisão sexual do trabalho, e entende-se que o labor do homem deve ser remunerado (pois ele é o provedor da família, embora hoje em dia 37% das residências no Brasil, e 40% dos EUA, já tenham mulheres como provedoras), e o das mulheres, fácil, inferior, muito menos importante, não deve render dindim. Afinal, elas fazem porque gostam, porque está nos genes, por vocação, por amor maternal, e esse assunto de dinheiro é tão masculino, né?
A cozinha não é o único lugar em que se desvaloriza o que as mulheres fazem diariamente, pois é apenas sua obrigação, mas quando é pra se ganhar dinheiro com isso, aí vira coisa de macho. Pense nas roupas. Quem costura em casa pro marido e pros filhos quase sempre é a mulher. É, novamente, um serviço não remunerado. Mas quando falamos em alta costura, entram os homens. A maior parte dos estilistas é homem (aviso aos ignorantes: homossexual é tão homem quanto héteros e bis são homens). Ironicamente, estilistas homens e brancos comandam (exploram?) uma ampla equipe de costureiras mulheres, pobres e negras. 
Sabe outro espaço que é dominado pelos homens? O da música clássica. Não porque mulheres não tenham ouvido musical ou qualquer outra besteira dessas, mas por mero preconceito. Pense em quantos maestros de orquestra são mulheres. Pouquíssimas. Isso porque a condutora deve liderar, e isso é visto como uma função "naturalmente" masculina (tão "natural" quanto a mulher cozinhar o mamute na caverna). Porém, quando os testes para preencher posições numa orquestra são apenas ouvidos, não vistos (as pessoas tocam atrás de uma tela), as instrumentistas mulheres ficam com 45% das vagas. 
O machismo ainda impera em várias áreas, e a gastronomia é uma delas. As coisas estão mudando, mas devagar demais, pro meu gosto. 




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