GUEST POST: O MASCULINO COMO GÊNERO PADRÃO DA HUMANIDADE
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GUEST POST: O MASCULINO COMO GÊNERO PADRÃO DA HUMANIDADE


Eu sempre estranho quando uso "queridas leitoras" (já que a maior parte das pessoas que me lêem é mulher) e os meus queridos leitores sentem-se excluídos. Mas, se eu adotasse "queridos leitores" para falar de todas as pessoas que me lêem, isso incluiria as mulheres, e ninguém acharia esquisito. Já parou pra pensar por quê, ou como a linguagem que falamos não é inclusiva de todos os seres humanos? Esta é a segunda parte (aqui a primeira) do guest post de Robson Fernando de Souza, autor do blog Consciência.

A discussão sobre o uso genérico da palavra homem vem esquentando apenas desde a segunda metade do século passado, mas desde as revoluções burguesas do século 18 desperta dubiedades oportunamente aproveitadas como motivos de exclusão feminina. Olympe de Gouges foi talvez a primeira pessoa a se insurgir contra o uso falsamente neutro do termo, ao reclamar que as mulheres não estavam sendo amparadas pela francesa Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, a qual teoricamente, mas não na prática, abarcava os dois gêneros. Isso levou-a a criar uma Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã, algo que infelizmente não foi levado a sério na época -– e lhe rendeu a guilhotina.
Previamente percebeu-se que os discursos dos filósofos que exaltavam aquele sujeito que ao mesmo tempo tinha e não tinha um rosto masculino -– o tal do homem –- dificilmente encaravam a mulher em pé de igualdade com os machos. Rousseau, segundo nos revela Simone de Beauvoir, pensava que “toda a educação da mulher deve ser relativa ao homem (…) A mulher é feita para ceder ao homem e suportar-lhe as injustiças” (O Segundo Sexo). Marina Basso Lacerda, por sua vez, em seu artigo "A gênese da divisão público/masculino e privado/feminino" (leia aqui), acusa: “a tradição filosófica de origem kantiana, quando considera o indivíduo moralmente autônomo, toma raramente a identidade feminina como ligada a essa noção de indivíduo.”
E demorou para que os discursos que visavam o homem “sem distinção de gênero” passassem a abraçar a mulher, considerando-se que direitos como o voto, a atividade política legislativa e executiva e a posse de propriedade só foram conquistados por ela -– e graças a suas lutas, não por concessões gratuitas por parte dos homens -– entre os meados do século 19 e os do 20 tanto nos países desenvolvidos como na maioria das nações em desenvolvimento. Enquanto isso, contraditoriamente, os livros das então nascentes Ciências Sociais abusavam de falar do homem como se tal palavra representasse a humanidade inteira sem nenhuma polêmica, dubiedade ou injustiça linguística.
Mesmo atualmente, o uso indiscriminado desse verbete da discórdia continua, inclusive entre muitas e muitas mulheres, que desconhecem -– ou mesmo ignoram ou irrelevam quando avisadas -– (por) que estão aceitando tacitamente o masculino ser o gênero padrão da humanidade.
Diz-se comumente ainda hoje, num senso comum seguido até pelos intelectuais mais cultos e cientificistas, que “homem tem dois significados: os humanos adultos do sexo masculino e os seres humanos indistintos de gênero e de idade”. Mas é considerado muito esquisito, e às vezes até ofensivo, que se diga, por exemplo:
- Eu sou um homem! (dito por uma mulher)
- Eu, você aqui, vocês duas sentadas ali, vocês rapazes aí no fundo, todos nós aqui somos homens de bem. (dito por uma mulher)
- Nós homens devemos respeitar mais os outros animais. (dito por uma mulher)
- Neste congresso de mulheres, nós devemos nos firmar como homens capazes de mudar a História. (dito por uma mulher para um público totalmente feminino)
- As mulheres são homens do sexo feminino.
- Metade dos homens têm a capacidade de engravidar e se reproduzir.
- Aquele lugar não aceita homens fêmeas.
- Aqui homens do sexo feminino só pagam metade do preço do ingresso.
- Alguns homens podem sofrer complicações no parto.
- Moram comigo e com meu marido quatro homens, sendo eles três filhas pequenas e um filho adolescente, dois cães e três gatos.
- Crianças e mulheres são homens ainda hoje pouco valorizados.
- Minhas filhas serão homens valorosos para a humanidade.
- Segundo o Censo 2010, há 190.732.694 homens no Brasil, incluindo-se entre eles 97.342.162 mulheres.
- Todos os homens no Brasil tiveram enfim direito ao voto no governo Vargas, com a instituição do voto feminino.
- Minha filha, que está na faculdade, é um homem exemplar.
- Sabia, Fulana, que você é um homem sensacional?
- Alguns homens precisam se cuidar por causa da menopausa.
- Metade dos homens têm o estrógeno como seu hormônio sexual.
- Alguns homens têm cromossomos XX, outros têm XY.
- Gosto de você como namorada linda e amável, como professora devotada, como homem espetacular.
- Simone de Beauvoir, Olympe de Gouges, Marie Curie, Rosa Parks, Emma Goldman… Todas elas foram homens de grande valor!
- Exemplos de mamíferos: homem (mas a foto é de uma mulher), girafa, elefante, cão, gato, leão…
Assim percebemos que a palavra homem não é tão unissex assim, mesmo que seus cognatos originais (homo, mann…) o tenham sido na Idade do Ferro. Reconheceu Paulo Freire diante desse inconveniente:
(…) É que, diziam elas, com suas palavras, discutindo a opressão, a libertação, criticando, com justa indignação, as estruturas opressoras, eu usava, porém, uma linguagem machista, portanto discriminatória, em que não havia lugar para as mulheres. (…) Em certo momento de minhas tentativas, puramente ideológicas, de justificar a mim mesmo, a linguagem machista que usava, percebi a mentira ou a ocultação da verdade que havia na afirmação: ‘Quando falo homem, a mulher está incluída’. E por que os homens não se acham incluídos quando dizemos: ‘As mulheres estão decididas a mudar o mundo’? (…) A discriminação da mulher, expressada e feita pelo discurso machista e encarnada em práticas concretas, é uma forma colonial de tratá-la, incompatível, portanto, com qualquer posição progressista, de mulher ou de homem, pouco importa. (…) A recusa à ideologia machista, que implica necessariamente a recriação da linguagem, faz parte do sonho possível em favor da mudança do mundo. (…) Não é puro idealismo, acrescente-se, não esperar que o mundo mude radicalmente para que se vá mudando a linguagem. Mudar a linguagem faz parte do processo de mudar o mundo. A relação entre linguagem-pensamento-mundo é uma relação dialética, processual, contraditória.” (Pedagogia da Esperança – Um Reencontro com a Pedagogia do Oprimido).
Desse discurso, aliás, extrai-se uma pergunta muito pertinente: por que os homens não se acham incluídos quando falamos a mulher ou as mulheres? A resposta mais fácil é o que foi exposto neste artigo: homem, e não mulher, serviu originalmente como denominação da espécie humana. Daí aparece algo interessante: se o cristianismo, a sociedade grega e os povos europeus antigo-medievais tivessem sido ginocráticos e misândricos em vez de androcráticos e misóginos, as mulheres hoje é que se chamariam as homens/las hombres/hommes/men, e aqueles que hoje chamamos homens continuariam sendo chamados por cognatos derivados de were/vir.

A parte final do guest post do Robson está aqui.





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