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GUEST POST: O PODER SOBRE O OUTRO -- TRANSEXUALIDADE E IMPOSIÇÕES SOCIAIS
Este texto me foi enviado por Ítalo Medeiros, 18 anos, estudante de Ciência da Computação pela Universidade Federal de Campina Grande, na linda Paraíba.
Por incrível que pareça, Ítalo escreveu o texto que publico abaixo no ano passado, ainda no ensino médio, sob a orientação de um professor de sociologia.
Ainda na última década de 90, a transexualidade era considerada uma patologia, um estado psicopatológico de não correspondência entre sexo anatômico e identidade sexual. O transexual, portanto, era um indivíduo que sofria de uma enfermidade, da qual precisava ser curado. Ora, em se tratando de uma doença, nada seria mais natural que se buscasse seu tratamento. Diante de tal consideração, a Organização Mundial de Saúde (OMS) e o Conselho Federal de Medicina (CFM) determinaram que a cirurgia de mudança de sexo seria, para os transexuais, o meio pelo qual o desvio de identidade sexual fosse revertido.
Realizada a cirurgia, o transexual, somente agora, poderia ser concretamente reconhecido como pertencente ao gênero com o qual sempre teve identificação. Tais pensamentos elucidam que os debates a respeito da transexualidade eram reduzidos a questões anatômicas e patológicas, posto que eram travados sob critérios deterministas que sugeriam que o transexual só poderia encontrar sua cura se ele próprio se submetesse a uma mudança corpórea que fizesse com que seu gênero, enquanto comportamento e aqui ainda entendido sob a concepção binária “homem/mulher”, pudesse condizer com sua genitália.
Contudo, tal como atuais debates apontam, a transexualidade é muito menos uma disfunção, uma enfermidade, do que um conflito identitário. Obviamente, o ser transexual não é um doente mental. Assim afirmado, observa-se a grande importância que o discurso de identidade de gênero tem para os debates sobre transexualidade.
Todos nós, ao nascermos, já carregamos o peso da imposição de uma identidade. A presença de um pênis ou de uma vagina gera expectativas relativas ao nosso ser no mundo. Desde cedo, portanto, somos obrigados a seguir regras específicas, pertencentes ao campo de identificação sexual sobre o qual somos despejados, que possam construir em nós, por imposição, o nosso papel social como homens ou mulheres.
Por exemplo, as garotas, desde cedo, ganham bonecas, vassouras e panelas de brinquedo, dentre outros objetos, que sugerem a construção de comportamentos e características como o espaço social restrito ao lar, a passividade, a racionalidade menos desenvolvida (como consequência da ausência da possibilidade de participação de atividades mais complexas), dentre outros. Por outro lado, aos garotos, quando são estimulados a praticarem esportes que exigem esforço físico, é concedido e estimulado o direito à ocupação e disputas de espaços públicos. Sendo assim, essas pequenas realizações da infância criam a subjetividade de que o espaço público é próprio dos homens.
Essas considerações apontam para a ideia de que, afinal, a identidade de gênero é uma construção social. No caso dos transexuais, o indivíduo, aos olhos da sociedade, age erroneamente ao não seguir seu gênero biológico. Os procedimentos paliativos, como as transformações físicas induzidas e o comportamento assumidamente do sexo com o qual o indivíduo se identifica, passam a ser vistos como um afastamento negativo e gradual daquilo que seria o caminho coerente, correto, saudável.
Não seria o caso de pensarmos que, na verdade, o que o transexual busca não é somente corresponder a um anseio espiritual, posto que ele próprio já se identifica com o gênero que lhe negam, mas também ser reconhecido pela sociedade como tal? Quando um transexual transforma-se, seja fisicamente, ou quando evidencia os atributos do gênero com o qual se identifica, não seriam essas transformações um pedido radicalizado de reconhecimento, inclusive legal, daquilo que ele verdadeiramente é?
Para a maioria dos transexuais, o reconhecimento de um corpo (o seu próprio) que não pode, sob comparação com os padrões determinados de gênero, expressar seus desejos e comportamentos, é o início de um processo de negação do eu. É mais do que compreensível essa frustração. Se durante toda uma infância um indivíduo se reconhecesse como mulher, por exemplo, apesar de ter nascido com um pênis, e enxergasse sua personalidade, seus gostos e alguns dos seus atributos como semelhantes aos daqueles que se constroem como pertencentes ao gênero feminino, como outras pessoas poderiam, após algum tempo, no início da adolescência, por exemplo, afirmar que este mesmo indivíduo simplesmente não era o que achava que fosse, e isso apenas porque ele teria alguma coisa meramente física, com a qual muito provavelmente nunca teve qualquer tipo de identificação/relação?
Para melhor elucidar a situação anterior, considere que, não tendo contato com a intimidade de outras crianças na infância, tal como realmente ocorre em nossa sociedade, e, portanto, sem diferenciá-las pela genitália como meninos ou meninas, na mente do indivíduo em questão ainda não teria se formado a ideia de que uma pessoa já nasce homem ou mulher.
Se para o reconhecimento legal e social de um gênero é necessário que o transexual apresente características físicas desse, incluindo-se nesse pacote a genitália, então esse será o caminho pretendido. É com base nesse pensamento que uma grande parcela de pessoas transexuais recorre aos processos indutivos de transformação física do corpo -– e a cirurgia de mudança de sexo é concebida como procedimento final, definitivo e incontestável de defesa de sua identidade.
No Brasil, o transexual que não optar por fazer a cirurgia de mudança de sexo não será considerado como um "verdadeiro" transexual. Será um transexual secundário, oscilando entre um homossexual e uma travesti, e não obterá permissão para adequação de seus documentos.
Entretanto, como já destacou Berenice Bento, não são todos os transexuais que querem passar pela intervenção cirúrgica, apesar da maior parte desejar não ter nascido com o órgão sexual do gênero com o qual não mantêm relação de identificação. Contudo, não são todos que afirmam uma completa rejeição, distância, à genitália com a qual nasceram. Uma pequena parcela assume a decisão de, não optando pela cirurgia de mudança de sexo, construir sua identidade pelos símbolos representantes de seu verdadeiro gênero (o independente do sexo biológico). Então, se a opção pela cirurgia de mudança de sexo não é representativa de todos os transexuais, como compreender que, em sua grande maioria, essas pessoas desejem a mudança anatômica? Não será que elas são ideologicamente conduzidas a aceitarem que só serão transexuais se fizerem tal cirurgia?
O fato de um transexual somente poder alterar seus documentos depois de realizada a cirurgia é uma condição de constrangimento e de negação ao direito que cada um tem de ser reconhecido socialmente tal como deseja. Não há gênero em uma estrutura corpórea, mas sim no dia a dia, no modo de se expressar, na roupa e nos acessórios que se usam, dentre outros. Portanto, o transexual não deve ter sua identidade condicionada a critérios que não considerem o gênero como uma construção social.
Apesar de no Brasil, atualmente, os transexuais já possuírem uma mínima abertura para a mudança de nome e de gênero nos registro civis -– como é o caso de um estudante de Franca, SP, e de alguns estados que adotaram um documento, denominado Carteira de Nome Social (que não substitui o registro de nascimento nem a Carteira de Identidade) -–, fica aqui o desejo de que essas práticas possam ser respaldadas legalmente em todo o território brasileiro, não ficando ao critério somente da interpretação de um juiz para cada caso, o que levaria o direito para uns transexuais, mas não para outros.Numa tomada mais abrangente, urge que toda e qualquer pessoa seja reconhecida e respeitada socialmente do modo como ela própria se enxerga, sem que mecanismos políticos e sociais privem-lhe disso que deve ser de seu direito. Que ninguém mais seja posto à margem! Que seja declarada, enfim, a liberdade!
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