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Internet livre em perigo - EDITORIAL O ESTADÃO
O Estado de S.Paulo - 12/03
O governo passou os últimos anos jurando defender a neutralidade na internet, princípio que garante total liberdade no uso da rede. No entanto, o projeto do Marco Civil da Internet, que está prestes a ser votado, contém brechas que, além de permitirem "tratamento diferenciado" para internautas por parte das empresas fornecedoras, podem ser interpretadas como um aval para que o governo regulamente, por decreto, a "discriminação ou a degradação do tráfego".
O Marco Civil é considerado a "Constituição da Web", pois elenca os direitos dos internautas e delimita a ação das empresas de telecomunicações, seja como produtoras de conteúdo, operadoras de telefonia ou como provedoras de acesso. A mobilização dessas companhias em favor de seus interesses econômicos e a vocação do governo de concentrar poder colocam em risco as conquistas do Marco Civil.
A demora em votar o projeto, que tramita desde 2009, tem dado margem a renovada pressão para que nele constem frases dúbias o suficiente para servirem aos interesses das gigantes de telefonia e de radiodifusão.
No caso específico da neutralidade, a intenção inicial do relator Alessandro Molon (PT-RJ) era assegurar a transmissão de informações sem discriminação de qualquer espécie, isto é, sem que haja qualquer possibilidade de suspensão do fluxo de dados a depender da origem, do destino ou do conteúdo propriamente dito.
As teles, por sua vez, querem diferenciar usuários, cobrando tarifas pelo volume de dados transmitido. Nesse modelo, se o volume contratado for excedido, a conexão será suspensa ou sofrerá redução drástica de velocidade, inviabilizando, na prática, o fluxo de informações. Tais limites são inadmissíveis na internet. Ademais, essa reivindicação não deveria constar no Marco Civil, que não se presta a amparar legalmente modelos de negócios.
Na defesa do projeto recentemente apresentada pelo deputado Molon, há uma frase que, a depender da interpretação, pode favorecer as reivindicações das teles. O trecho sugere "tratamento diferenciado a vídeos em tempo real (streaming) ou mesmo a utilização de voz sobre IP (VoIP), como Skype". Mesmo que o texto assegure que não há "violação ao princípio da neutralidade", o simples fato de aceitar "tratamento diferenciado" permite contestações judiciais.
Ademais, a pressão das teles - as mesmas que entregam um serviço muito ruim pelo preço que cobram - resultou na inclusão de uma frase que defende a "liberdade dos modelos de negócios promovidos na internet". Ou seja, a título de garantir que as empresas possam vender pacotes com diferentes velocidades, o que é perfeitamente legal, o Marco Civil pode lhes dar a chance de vender pacotes de acordo com o conteúdo transmitido, e isso é uma clara ameaça de censura.
Já o parágrafo 1.º do artigo 9.º do projeto - justamente o artigo que trata da neutralidade - abre espaço para a interferência do governo na rede. O texto aceita que haja "discriminação ou degradação do tráfego", feita por decreto, em razão de "requisitos técnicos indispensáveis à prestação adequada dos serviços e aplicações" e de "priorização a serviços de emergência". A flacidez conceitual desse parágrafo dá margem óbvia para decisões arbitrárias.
O Marco Civil tem sido um dos instrumentos da pressão de políticos governistas sobre a presidente Dilma Rousseff, na queda de braço do PMDB por mais espaço no governo e nos palanques das eleições deste ano. Não é coincidência o fato de que o principal porta-voz na Câmara das reivindicações das teles nesse caso seja o deputado Eduardo Cunha, líder do PMDB e maior desafeto de Dilma na base aliada.
À mercê de um jogo que nada tem a ver com o interesse do País, e sim com as ambições de meia dúzia de caciques políticos, o Marco Civil, fundamental para definir a internet como o ambiente essencialmente democrático da era digital, pode ser desfigurado a ponto de permitir que um espírito autoritário ou mercantil dite suas regras de funcionamento.
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