(Dos jornais)
Erich Fromm, já na década de 70, intuíra haver nítida relação entre o culto da tecnologia e tendências necrófilas. ?A fusão da técnica com a destrutividade não se mostrava ainda visível por ocasião da Primeira Guerra Mundial. Havia pouca destruição por parte dos aviões, e o tanque era apenas uma evolução das armas tradicionais. A Segunda Guerra Mundial trouxe uma mudança decisiva: a utilização do avião para a mortandade
Se a palavra do professor de Heildelberg não valia nada, dada sua reconhecida formação marxista (menos sob a ótica política e mais pelo humanismo que caracterizou as preocupações do outro pensador alemão), a julgar pelo incremento da indústria bélica norte-americana na última metade do século passado, que dizer dos comentários irrespondíveis de Noam Chomsky a respeito de atos terroristas (assim ele os classifica) praticados pelo governo norte-americano, como, por exemplo, o bombardeio das instalações farmacêuticas de Al-Shifa, no Sudão, levada a efeito em agosto de 1998?
?As instalações de Al-Shifa eram as únicas a produzir drogas contra a tuberculose, para mais de 100.000 pacientes, a preço de cerca de uma libra inglesa por mês. Qualquer remédio importado (mais caro) não é acessível aos sudaneses ? ou aos maridos, esposas e filhos dos doentes, que serão infectados a partir de então. Al-Shifa também fabricava drogas de uso veterinário para esse vasto país, que vive na sua maior parte da produção pastoril. A especialidade de Al-Shifa eram as drogas para matar parasitas, que passam do gado para quem cuida dele, e que são uma das principais causas, no Sudão, da mortalidade infantil?, relata, citando reportagem de James Astill, publicada no Guardian de 2 de outubro de 2001.
Tudo isso, porém, são dados estatísticos. Dados reais são os nomes dos fuzileiros navais norte-americanos mortos no Vietnã e imortalizados no panteão a céu aberto erguido por seus compatriotas. Identificássemos todas as vítimas do terrorismo norte-americano na Ásia, na América e na África, tal como registra Chomsky, e teríamos, certamente, de utilizar a muralha da China para imortalizar seus nomes.
Façamos, a esta altura, alguns closes com nossa câmera investigativa: Bouvanah Maneevong é plantador de arroz no Laos. Cuidadosamente ele procura, com as mãos, no local alagado, pela presença de algum artefato explosivo. Quando os encontra, leva-os cuidadosamente para um buraco aberto além, e aciona um gerador para explodir as bombas
Em agosto de 1993, Nag Saiko e sua filha Posua, de 13 anos, trabalhavam lado a lado no jardim de sua casa, na província de Xieng Khouang, no Laos. Posua tocou com seu instrumento de trabalho em um artefato de metal, que explodiu, matando-a. Estilhaços feriram a mãe no rosto e na perna.
Chantaly era uma moça de 18 anos, que sonhava casar-se e ter filhos. Em julho de 1993 uma explosão de um de tais artefatos causou-lhe graves queimaduras, além de cegá-la. Quando chega alguma visita, ela se esconde, envergonhada de seu aspecto. Em 1976 ela já havia perdido um irmão, quando uma dessas bombas explodiu. Ele tinha 11 anos de idade.
Em novembro de 1993, os dois filhos de Tu Va Chao, Kou Ya, de 4 anos, e Sai Ya, de 6, levavam um búfalo para o pasto. Sai Ya encontrou uma bola metálica e a apanhou, supondo fosse um brinquedo. Em seguida atirou-a na direção de seu irmão. A bomba explodiu, matando Kou imediatamente. Sai Ya morreu dois dias depois. Um ciclista que passava pelo local ficou ferido com a explosão.
Que há de comum em todos esses casos (e em muitos outros que poderiam ser lembrados), exemplos típicos de terrorismo, consoante a definição de Chomsky? De
Estima-se que foram realizados mais de 580.000 vôos ao longo desses nove anos, que despejaram cerca de 6.000.000 (seis milhões) de bombas convencionais além de 100.000.000 (cem milhões) de ?bomblets?, que eram uma espécie de granada redonda, pouco maior do que uma bola de baseball, transportada em uma bomba especial que, ao se aproximar do solo, explodia apenas para o efeito de espalhar essas granadas aleatoriamente por toda a área. Assim, essas ?bomblets? transformaram-se em minas, em armadilhas mortíferas, à espera de serem detonadas quando alguém, desavisado, as tocasse. Só na província de Xieng Khouang foram despejadas mais de 300.000 toneladas de bombas, o que corresponde a duas toneladas por habitante!
Ocorreu que, por força das chuvas torrenciais que costumam cair sobre aquela região, as monções, essas bombas foram levadas para outros lugares ou cobertas pela lama, ficando imperceptíveis. Somente quando tocadas por algum objeto mais duro (um instrumento agrícola, por exemplo) elas acusam sua existência, explodindo.
Mais de 11.000 pessoas foram mortas ou feridas nos vinte anos seguintes ao término da guerra do Vietnã, em razão da explosão dessas ?bomblets?.
Esses dados constam de relatórios da Mennonite Central Committee, organização não-governamental, sediada nos Estados Unidos e ligada à North American Mennonite and Brethren in Christ, e que desenvolveu, juntamente com outras entidades (como a inglesa Mines Advisory Group, trabalhos de assistência naquele país. Evidentemente, não há como saber quantas bombas restam para serem detonadas nem como recolhê-las todas, pois, com o passar do tempo, a própria vegetação ou os efeitos da erosão escondem ainda mais tais armadilhas, tornando-as mais perigosas.
Temos, portanto, que um propósito inicial voltado para uma causa que se dizia justa, por mais criticável que fosse, vem acarretando danos perfeitamente previsíveis e cuja ocorrência se dará sabe-se lá por quanto tempo ainda, pois é impossível calcular quantas bombas ainda não foram localizadas. Vive-se ali, literalmente, em um campo minado, sem que ali haja guerra. E sem que o país tivesse estado sob uma guerra oficial. Ironicamente, muitas das vítimas (mais de 50% são crianças e jovens com menos de 15 anos) nem haviam ainda nascido quando a guerra terminou, ao menos oficialmente. Valha notar que o Brasil fabrica e exporta essas ?bomblets?, por mais pacifista que seja o discurso de seus governantes.
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Extraído do livro Justiça & Caos, Editora Instituto Memória, 2008, p. 162