Leiam Mises!
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Leiam Mises!


Rodrigo Constantino

O economista Adolfo Sachsida engrossou o coro daqueles que vêm criticando a postura dogmática e infantil de certos "libertários". Ele escreveu um artigo condenando essa forma de agir e pensar de alguns anarco-capitalistas, que muito se assemelha aos marxistas. Sachsida ficou espantado ao saber que essas pessoas, na maioria dos casos mais jovens (mas há os tais "adolescentes crescidos", que já passaram dos 30), consideram Friedman e Hayek "socialistas". Ele diz:

Na cabeça de alguns seguidores de Von Mises apenas pessoas que defendem TODAS as implicações possíveis dos três itens listados acima são liberais. Por consequência, eles afirmam que Milton Frieman e Friederich Hayek, dois dos maiores pensadores liberais, não eram liberais. Esse tipo de radicalismo, e de tratar a todos que discordam deles de desonestos ou imbecis os aproxima, e muito, da tradição marxista. Pior, ao afastarem pensadores do calibre de Friedman e de Hayek abrem espaço para seguirem pensadores com habilidades no mínimo duvidosas.

Mas é pior! Pela lógica deles, seguindo o critério absurdo de que somente anarquistas defendem a liberdade e todos os demais são socialistas em diferentes graus, até mesmo Mises seria um socialista! E é aqui que discordo um pouco de Sacshida e preciso fazer alguns esclarecimentos, em nome da boa luta liberal. Antes disso, segue mais um trecho do texto de Sacshida importante para fazer meu ponto:

Hoje determinado grupo de seguidores de Von Mises se assemelha muito a grupos de seguidores de Marx, são intolerantes, arrogantes, e o que é pior, na esmagadora maioria das vezes são tecnicamente fracos. Nunca escreveram ou publicaram nada, acreditam honestamente que "Ação Humana" deve ser lida como uma bíblia. Esse grupo realmente se assemelha aos seguidores de Marx que consideram "O Capital" como uma bíblia.

Aqui está! Eu, como liberal, condeno qualquer leitura de um autor como bíblia, pois o liberalismo não é um sistema fechado, dogmático. Mas esses "seguidores" de Mises não lêem Mises como onisciente ou "Ação Humana" como uma bíblia. Seria errado, como disse, e eu mesmo não concordo com Mises em tudo, naturalmente. Mas seria bem menos pior do que fazem! A triste verdade é que eles falam em nome de Mises, mas eles não leram Mises direito, ou se leram, não entenderam, ou se entenderam, não ligam para o fato de que defendem coisas diametralmente opostas ao pensador austríaco.

Como eu já cansei de dizer, Mises eram um ferrenho defensor do liberalismo, ou seja, ele pregava a democracia e o estado de direito. Ele não queria saber de dogmatismo, de direito natural visto como um valor absoluto, de anarquia ou qualquer coisa do tipo. Ao contrário: ele condenava veementemente isso tudo, e abraçava uma postura realmente liberal. O que esse pessoal precisa fazer, portanto, não é deixar de ver "Ação Humana" como uma bíblia, mas sim ler direito esse e todos os demais livros de Mises, um grande defensor da liberdade.

Hayek morria de medo dos "hayekianos", pois viu o que os marxistas fizeram com Marx e os keynesianos com Keynes. É verdade que Marx e Keynes merecem muitas críticas, e liberal que se preza sabe bem disso; mas também é verdade que seus ditos seguidores conseguiram piorar e muito o legado deles. Ao que parece, Mises foi vítima do mesmo destino. Esses jovens, em busca de certezas, lêem muito mais os seguidores de Mises, anarco-capitalistas e alguns bem fanáticos, do que a própria fonte. Minha recomendação é que leiam mais Mises e Hayek, os maiores expoentes da Escola Austríaca.

Alguns acham que essas críticas que eu faço, ou que Sachsida fez, ou que outros, como Claudio Shikida, Flávio Morgenstern e Fabio Barbieri já fizeram, acaba sendo contraproducente. Curiosamente, eles dizem que não é útil essa estratégia. Para quem condena tanto o utilitarismo defendido por Mises, é no mínimo engraçado isso. Mas o ponto é que eu discordo, pela ótica utilitarista mesmo. Eu penso que essa postura dogmática e arrogante desse grupo contamina o liberalismo e afasta gente boa da causa liberal. Por isso, e apenas por isso, eu busco resgatar Mises e seu legado.

A seguir, alguns trechos retirados de vários livros de Mises, para não deixar margem à dúvidas do que ele defendia. Não são passagens isoladas, fora de contexto; são, antes, pilares fundamentais de toda a sua filosofia liberal. Vamos lá:

"O fanatismo impede que os ensinamentos da teoria econômica sejam escutados, a teimosia impossibilita qualquer mudança de opinião e a experiência não serve de base a nada." 

"The more recent writers are inclined to assume a contrast between Liberalism and Democracy. They seem to have no clear conceptions of either; above all, their ideas as to the philosophical basis of democratic institutions seem to be derived exlusively from the ideas of natural law." 

"The truth is that the significance of the democratic form of constitution is something quite different from all this. Its funtion is to make peace, to avoid violent revolutions."

"Democracy is not only not revolutionary, but it seeks to extirpate revolution. The cult of revolution, of violent overthrow at any price, which is peculiar to Marxism, has nothing whatever to do with democracy. Liberalism, recognizing that the attainment of the economic aims of man presupposes peace, and seeking therefore to eliminate all causes of strife at home or in foreign politics, desires democracy."

"Always and everywhere Liberalism demands democracy at once, for it believes that the function which it has to fulfil in society permits of no postponement. Without democracy the peaceful development of the state is impossible."

"Even where for an indefinite time to come it may expect to reap only disadvantages from democracy, Liberalism still advocates democracy. Liberalism believes that it cannot maintain itself against the will of the majority."

"Liberalism differs radically from anarchism. It has nothing in common with the absurd illusions of the anarchists. ...Liberalism is not so foolish as to aim at the abolition of the state."

"As far as the government - the social apparatus of compulsion and oppression - confines the exercise of its violence and the threat of such violence to the suppression and prevention of antisocial action, there prevails what reasonably and meaningfully can be called liberty."

"[...] the teachings of utilitarian philosophy and classical economics have nothing at all to do with the doctrine of natural right. With them the only point that matters is social utility. They recommend popular government, private property, tolerance, and freedom not because they are natural and just, but because they are beneficial. [...] The Utilitarians do not combat arbitrary government and privileges because they are against natural law but because they are detrimental to prosperity."

"It is useless to stand upon an alleged 'natural' right of individuals to own property if other people assert that the foremost 'natural' right is that of income equality. Such disputes can never be settled."

"Government means always coercion and compulsion and is by necessity the opposite of liberty. Government is a guarantor of liberty and is compatible with liberty only if its range is adequately restricted to the preservation of what is called economic freedom."

"Taxation is a matter of the market economy. It is one of the characteristic features of the market economy that the government does not interfere with the market phenomena and that its technical apparatus is so small that its maintenance absorbs only a modest fraction of the total sum of the individual citizen's incomes. Then taxes are an appropriate vehicle for providing the funds needed by the government." 

"There is, however, no such thing as a perennial standard of what is just and what is unjust. Nature is alien to the idea of right and wrong.… The notion of right and wrong is a human device."

"All moral rules and human laws are means for the realization of definite ends. There is no method available for the appreciation of their goodness or badness other than to scrutinize their usefulness for the attainment of the ends chosen and aimed at."

"It is a fact that almost all men agree in aiming at certain ends, at those pleasures which ivory-tower moralists disdain as base and shabby. But it is no less a fact that even the most sublime ends cannot be sought by people who have not first satisfied the wants of their animal body. The loftiest exploits of philosophy, art, and literature would never have been performed by men living outside of society."

"Que o governo e a polícia se encarreguem de proteger os cidadãos, e entre eles os homens de negócio e, evidentemente, seus empregados, contra ataques de bandidos nacionais ou do exterior, é efetivamente uma expectativa normal e necessária, algo a se esperar de qualquer governo. Essa proteção não constitui uma intervenção, pois a única função legitima do governo é, precisamente, produzir segurança."

Como fica claro (cristalino, na verdade), Mises era um liberal clássico, defensor da democracia (com todas as suas imperfeições), do utilitarismo (ele estava muito mais preocupado com o resultado de suas idéias em vez do gozo de ser o detentor da única Verdade em uma Torre de Marfim), que rechaçava a anarquia revolucionária, o conceito dogmático de direito natural que acabou levando seus seguidores a constatarem que existe um e somente um princípio importante e absoluto para a vida em sociedade: o de não-agressão. A coisa é muito mais complexa e o buraco é muito mais embaixo.

Enfim, considero saudável o debate e fico contente que Adolfo Sachsida tenha aderido ao front de batalha. Ela é necessária para separar o joio do trigo e ajudar a esclarecer melhor alguns que, no fundo, leram pouco ou nada do próprio Mises. Fica minha sugestão: leiam Mises!





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