A letra R
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A letra R



Rodrigo Constantino

“Todo liberal é um anarquista frustrado”, dizia o professor Og Leme. Os liberais, desde sempre, debateram como preservar as liberdades individuais mais básicas, e invariavelmente concluíram que o governo era uma espécie de “mal necessário” para tanto. A alternativa hobbesbiana seria uma luta de todos contra todos, o caos anárquico que possivelmente descambaria em um regime despótico. O vácuo de poder costuma ser sempre preenchido.

Compreendendo isto, Ludwig von Mises sempre defendeu a democracia como meio pacífico para eliminar absurdos e caminhar na direção de maior liberdade. Ele considerava a democracia liberal um antídoto contra revoluções. Disse ele: “A democracia não só não é revolucionária, mas ela pretende extirpar a revolução”. Mises tinha dificuldade de entender porque tanta gente inteligente era atraída pela anarquia, e suspeitava que se tratava de uma reação ao endeusamento do estado. Mas ele sabia que esta reação não era o caminho certo para combater os abusos do estado.

Um de seus pupilos mais brilhantes, Murray Rothbard, resolveu seguir por um caminho diferente. Rothbard rejeitou a democracia e até mesmo o liberalismo, passando a crer em uma via revolucionária e anárquica. Seus seguidores passaram, então, a defender uma ideologia conhecida como “anarco-capitalismo”, que tenta misturar a anarquia e o capitalismo. Uma mistura que, para os liberais, nunca fez sentido, uma vez que o capitalismo depende do próprio estado para viver.

O anarco-capitalismo fala de um fim desejado, ou seja, uma sociedade livre do estado, mas que consegue preservar a propriedade privada por meio de agências privadas de segurança (milícias). O meio, entretanto, continua sendo a velha anarquia de sempre, ou seja, a abolição do estado. Anarco-capitalistas, por coerência, não respeitam a via política como mecanismo para tratar das coisas públicas. Em essência, tudo seria privado em uma sociedade como esta. Algo como feudos particulares.

O foco deste artigo não será o anarco-capitalismo em si, mas sim os perigos da postura revolucionária. Os liberais sempre temeram revoluções, e não por acaso. À exceção da “Revolução” Americana, todas as outras trocaram seis por meia dúzia, ou colocaram no poder regimes ainda mais despóticos do que os derrubados. Basta pensar na Revolução Francesa, na Revolução Soviética e na Revolução Cubana como exemplos. Se a monarquia dos Bourbon, o regime czarista e a ditadura de Fulgêncio Batista eram modelos nefastos, o que colocaram em seus respectivos lugares foi ainda mais assustador.

O caso americano, porém, é totalmente peculiar. Os “pais fundadores” estavam lutando para preservar certos valores já existentes naquela sociedade, contra os abusos da Coroa Inglesa. Mas não era nada parecido com uma revolução no sentido comumente aceito, de transformar toda a sociedade e criar um “mundo novo”. Expulsaram os ingleses, e criaram um pacto federativo para a criação de um novo governo central, garantindo as liberdades já valorizadas ou existentes na nação. A “revolução” Americana foi, na verdade, uma reforma liberalizante.

Revolucionários, como mostra a história, costumam ser perigosos para a paz e a liberdade. Por isso o liberalismo sempre se afastou dos revolucionários. Estes, no afã de derrubar o sistema vigente para implantar o novo mundo “livre” ou “justo”, acabam defendendo caminhos muitas vezes contrários ao liberalismo. E um caso pode ilustrar bem isso: o do próprio Rothbard. Em 1968, já com mais de 40 anos (ou seja, sem a desculpa da juventude rebelde e imatura), Rothbard escreveu um artigo enaltecendo ninguém menos que o guerrilheiro comunista Che Guevara. Alguns trechos deste artigo comprovam os perigos deste radicalismo revolucionário. O alvo mais importante para Rothbard era o “imperialismo americano”. Seguindo a máxima de que o inimigo de meu inimigo é meu amigo, Rothbard teceu elogios patéticos ao assassino argentino.

Ele disse: “Che era um revolucionário notável, mas não um eminente administrador, e ainda pior como um economista”. Notem que, para Rothbard, o problema de Che Guevara não era seus meios nefastos para “combater o imperialismo”, mas sim sua incapacidade administrativa. E eis a forma patética com a qual Rothbard poetiza a morte do assassino: “A CIA pode reclamar o corpo de Che, mas ela nunca será capaz de algemar o seu espírito”.

Este radicalismo revolucionário não escapou à atenção do próprio Mises. Em uma carta de seu amigo Fertig, que, segundo o biógrafo Jörg Hulsmann, provavelmente capturava a própria decepção de Mises, ele lamenta a aproximação de Rothbard com a Nova Esquerda, e cita a presença do economista em uma comissão que favoreceu Fidel Castro e Cuba. Conclui afirmando ser muito triste ver uma mente brilhante descer ao fundo do poço dessa forma.

Atualmente, alguns seguidores de Rothbard cometem o mesmo tipo de erro. Alguns estão tão obcecados em atacar o governo americano que passam a defender coisas realmente absurdas. Se o governo americano tem bombas atômicas, por que o Irã não pode ter? Ignoram as gritantes diferenças entre os dois países, e levantam uma bandeira claramente contrária à paz e à liberdade. Alguns chegam ao extremo de considerar o governo americano uma instituição mais perigosa para a liberdade do que o grupo terrorista Al Qaeda. Não percebem que estão caindo no mesmo erro de Rothbard, quando este aplaudiu o “espírito revolucionário” de Che Guevara. Uma coisa é criticar os abusos e defeitos do governo americano, que são muitos. Outra, bem diferente, é colocar este governo como o inimigo número um da liberdade, e começar a relativizar atrocidades praticadas pelos verdadeiros inimigos da liberdade mundo afora.

Se não me falha a memória, foi Roberto Campos quem disse que o único problema com a revolução é a letra R. De fato, os liberais sempre lutaram e ainda lutam pela evolução constante do sistema capitalista liberal e democrático. Eles reconhecem que há muitas imperfeições, e que qualquer modelo de sociedade sempre será imperfeito. Mas temem ainda mais as revoluções “redentoras” que vão trazer a liberdade “plena” de vez, que vão criar um mundo “justo”.

Se até mesmo um economista brilhante como Rothbard, que teve o privilégio de aprender com o melhor deles, o próprio Mises, chegou ao extremo de defender Che Guevara, o que dizer de alguns revolucionários mais jovens e sem este histórico? A tentação do revolucionário será radicalizar cada vez mais, especialmente se alimentado pela rebeldia natural da juventude. E isso não é saudável para a defesa da liberdade. Para o bem da causa liberal, penso que os revolucionários deveriam esquecer a letra R e focar no restante.




- Vasco Gonçalves
Mal o conheci pessoalmente. Mas as duas ou três vezes que nos encontrámos em 1974 e 1975 revelaram-me um homem sério, empenhado, honesto, culto e idealista. Para ele a revolução ficou amarguradamente inacabada, muito aquém do "verdadeiro socialismo"...

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