LEMBRANÇAS DE UMA CRÍTICA DE CINEMA ACERCA DE UM FILME RUIM
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LEMBRANÇAS DE UMA CRÍTICA DE CINEMA ACERCA DE UM FILME RUIM


Meus três leitores constantemente querem saber porque me tornei uma crítica de cinema. A dúvida segue mais ou menos esta linha: Lolinha, você é uma deusa, e você poderia falar sobre o que quisesse, por que então gasta seu tempo falando de filmes? Bom, acho que o gostinho de saber que estou sempre certa começou na infância. Vou contar uma história 100% verdadeira, mas peço que as pessoas com menos de 30 anos e sem a mínima cultura cinematográfica exigida não a leiam, pois não tenho paciência para explicar todos os nomes reais envolvidos.


Foi um delicioso artigo em abril deste ano na "Vanity Fair", a revista que já foi melhor, que trouxe à tona minhas memórias. Por coincidência, o autor, Steven Daly, fala da loucura que foram as filmagens de uma das piores fitas de todos os tempos. Nunca vi tal filme, e provavelmente você também não, mas é o tipo de produção ruim, tão horrenda que vira objeto de culto. Chama-se "Myra Breckinridge" e, quando passou no Brasil (acredite, passou), levou o título de "Homem e Mulher Até Certo Ponto". É de 1970, baseado no romance homônimo de Gore Vidal, considerado "infilmável", e trata de uma cirurgia para mudança de sexo.


Opa! O que isso tem a ver comigo?! Nada, lógico. Porém, em 75, o diretor da citada tragicomédia ficou uma temporada em minha casa no Leblon, no Rio. A casa nem era minha, era dos meus pais, eu só tinha 7 ou 8 aninhos na época, mas me recordo de algumas coisas. Primeiro, vamos aos fatos sobre o filme, que são bem divertidos por si só.


Os produtores haviam comprado o bestseller de Vidal por US$ 900 mil, uma quantia nada desprezível no final dos 60. Com os direitos autorais nas mãos, fizeram o que os chefões de Hollywood fazem ao se debater com um material tão explosivo: coçaram a cabeça e se arrependeram. Como adaptar aquilo? Entra em cena o nome mais quente da Swinging London, o diretor, fotógrafo, ator, pintor, cantor, pau-pra-toda-obra e amigo de todo mundo Michael Sarne. Com trinta e poucos anos, o bonitão inglês já havia sido amante de Brigitte Bardot e feito um filme. Currículo suficiente para que os produtores o convidassem para escrever o roteiro de "Myra Breckinridge".


De cara, Michael teve uma idéia "brilhante": fazer com que, no final da trama, tudo não passasse de um sonho. Digamos que esta seja a saída fácil mais manjada de todos os tempos, mas os executivos nada criativos do estúdio gostaram. Michael escolheu o símbolo sexual Raquel Welch para protagonizar sua visão. Raquel como um travesti soa ridículo? Parece que a outra opção era a Elizabeth Taylor, então... Só que, antes de Myra se transformar num mulherão, havia a necessidade de um ator. E claro que Michael elegeu um não-ator para o papel: o fotogênico crítico Rex Reed, famoso até hoje por demolir filmes, não por seus dotes teatrais. "Myra" pode ser péssimo, mas é uma vingança e tanto ver um crítico de verdade representar um cara que acorda no final e pergunta, visivelmente constrangido, "onde estão meus peitos?". Em sua coluna, Reed não poupou o filme. Ele plantou várias notinhas na imprensa. A mais suave citava um amigo indagando "por que os Kennedys morreram e Michael vive?".


Pobre Michael, a maior vítima deste desastre que foi "Myra". Sua escalação do elenco foi no mínimo original. Para outro papel relevante, ele convocou o ícone Mae West. Mae estava com 76 anos, não filmava havia 27, mas não perdia a sua verve venenosa de jeito nenhum. Numa reunião de pré-produção, um outro roteirista (os produtores não confiavam tanto assim em Michael) sugeriu que o personagem de Mae, de repente, poderia haver conhecido um velhinho três décadas antes. Mae o fitou duramente e disse, em terceira pessoa mesmo: "Mae West nunca interpreta um personagem com mais de 26 anos". Ela também distribuiu uma cópia mimeografada de suas exigências. Nos dois primeiros pontos, já ficava claro que ela não havia lido o roteiro ou o livro. No terceiro item, ela pedia dois números musicais. Uhm, "Myra" não tem números musicais. Quer dizer, não tinha. Passou a ter com as demandas extravagantes de Mae. Outra ordem foi que ela escreveria suas próprias falas. Elas estão lá, tipicamente Mae West, como se vê neste diálogo:


Mae: Qual é a sua altura, caubói?
Caubói: Dois metros e dezoito centímetros.
Mae: Bem, esqueça os dois metros e vamos falar sobre esses dezoito centímetros.


Para representar um velho decadente, Michael selecionou outra lenda viva, o diretor John Huston. John odiou Michael desde que este disse em uma entrevista que John era um burocrata. Nas filmagens, ele ouvia as instruções de Michael e empenhava-se em fazer exatamente o contrário. Hoje, Michael afirma que houve uma falha de comunicação com o entrevistador. Ele não tinha falado que John era um burocrata. Falou que John não sabia atuar. Ah, bom. Se John estivesse vivo, certamente o perdoaria...


E, se você algum dia tiver a sorte (ou o azar) de assistir à "Myra", preste atenção em dois papéis pequenos. Em um deles, a pantera Farrah Fawcett, muito novinha, faz a bela moça (descrita no livro como "retardada mental") seduzida por Raquel. Em outro, o garanhão Tom Selleck (antes do bigode de "Magnum") faz... um garanhão, claro.


"Myra" foi um fracasso absoluto principalmente porque, com todo o talento reunido, houve um choque de egos. Mas também porque cada um dos mitos teimou em interpretar a si mesmo. Cada um parecia estar em um filme diferente, e o resultado foi risível. Ninguém teve a carreira tão destruída como seu diretor, Michael Sarne.


Pois bem, eu conheço o Michael. Ele era uma simpatia e se exilou no Brasil, mais precisamente em minha casa, em meados dos anos 70. Grande coisa, dirá você. Ah é? Minha mãe era amante dele. Por favor, me avise se a sua mama já teve um caso com alguém que dormiu com a Brigitte Bardot. Isso faz de mim e a BB praticamente parentes.


Como se isso não bastasse, nos vários meses que Michael desfrutou da minha companhia (eu já era um gênio aos 8 anos), ele fez um filme chamado "Intimidade". Certo, eu tampouco ouvi falar, mas lembro como se fosse hoje da estrela da película, Vera Fischer, na minha sala de estar, visitando o Michael. Certamente, ela deve ter dirigido um "oi" pra mim.


E sabe quem mais veio me visitar? Bom, veio visitar o Michael? Os consagrados diretores Coppola e Polanski, que eram amigos dele. Apesar de Polanski não filmar algo que preste há 20 anos, ele é um dos grandes do cinema. Grande em importância, bem entendido, porque em tamanho eu me lembro d’ele ter a minha altura – e eu era uma criança. Naquele período, Polanski já havia sido expulso dos EUA por corrupção de menores. Um pouco depois, perguntei pra minha mãe se ele havia se interessado por mim. Sua resposta foi humilhante: "Não, você era muito velha pra ele. Ele olhava bastante pra sua irmã (de 4 anos)".


De qualquer jeito, é quase certo que eu tive uma influência indelével na vida destas celebridades. A lamentar, somente o fato de que o que me despertou essas reminiscências foi um filme que entrou nos anais da história como um dos piores jamais produzidos, um filme que inclui a suprema humilhação de um crítico, que trata de travestis e que enterrou o promissor futuro de um diretor amigo meu. Quem diria, acho que me tornei crítica de cinema aos 8 anos.





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