MAMÃE NÃO AMA KEVIN
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MAMÃE NÃO AMA KEVIN


Assim que vi Precisamos Falar Sobre Kevin, há mais de um ano, fiquei louca pra ler o romance de 2003 de Lionel Shriver, em que o filme foi inspirado. Até hoje este é um dos meus posts sobre cinema mais comentados e visitados, prova de que a história definitivamente mexe com o pessoal.
E qual é a história? Em linhas gerais, é a de mulher, Eva (brilhantemente interpretada por Tilda Swinton), que não quer ser mãe, mas, após a insistência do marido, acaba gerando um pequeno monstrinho, o Kevin do título (veja trailer, aqui também). Kevin é um bebê complicado desde o comecinho, e ele vai crescendo até se tornar um desses adolescentes que cometem massacres nas escolas americanas. 
O filme de Lynne Ramsay tem todo um clima especial que só revela o que acontece pouco a pouco. É totalmente envolvente e perturbador. Revi o filme depois de ler o livro, e não tem jeito não: prefiro o filme. Não que não tenha gostado do livro, que é narrado em primeira pessoa por Eva através de cartas apaixonadas e críticas para seu marido. Mas, de algum jeito, achei que o livro foi perdendo o gás da metade pra frente. Não sei explicar, e não sei se você teve a mesma impressão. Talvez pelo livro ser mais difuso, e o filme se focar mais em reações, pra mim o filme me fisgou mais.
Por exemplo, o livro é muito crítico aos EUA, se bem que também é crítico a quem critica os EUA (no caso, a protagonista e narradora, Eva, que é americana com ascendência armênica). Algumas partes da narrativa levam muito tempo para se desenvolver e poderiam ter ficado de fora. E, de fato, ficam de fora do filme, uma decisão inteligente.
Estou pensando na parte em que Kevin e seu amigo nada esperto jogam pedras do alto de uma passarela, atingindo os carros que passam embaixo. A acusação de abuso sexual a uma professora também não acrescenta grande coisa. São pedaços um tantos desnecessários, porque a gente já acredita que Kevin tem problemas. E a gente sabe que Eva sabe disso. E que seu marido é um boçal que não vê nada de errado no filhinho querido.

Ontem mesmo estava lendo o excelente livro de Gavin de Becker, O Dom do Medo (ou As Virtudes do Medo, dependendo da tradução -- prometo que falarei mais dele em breve). Num trecho ele trata sobre o que faz alguém se tornar um serial killer (minha tradução muito capenga, que desconhece termos técnicos):

“Algo que prevê criminalidade violenta é violência na infância. Por exemplo, a pesquisa de Ressler [Robert Ressler, cientista comportamental do FBI, e inventor do termo serial killer] confirmou uma estatística incrivelmente consistente sobre serial killers: 100% foram abusados quando crianças, seja com violência, negligência, ou humilhação. […] Não quero incriminar todos os pais que criam crianças violentas, porque há casos em que atos horríveis são cometidos por pessoas com desordens mentais orgânicas, aquelas que a Associação Nacional de Doenças Mentais chama de 'doenças sem culpa' [no-fault illnesses] (também é verdade que muitas pessoas com doenças mentais foram abusadas quando crianças). 
Pré-disposição genética pode também ter seu papel na violência, mas seja lá qual baralho é dado a uma família, os pais têm no mínimo o que Daniel Goleman, autor de Inteligência Emocional, chama de 'janela de oportunidade'. Esta janela foi trancada durante a infância da maior parte das pessoas violentas. Para entender quem essas crianças maltratadas se tornam, devemos começar onde elas começaram: como pessoas regulares”.

Não sei até que ponto dá pra aplicar isso que diz Becker em Precisamos Falar sobre Kevin. Primeiro porque Kevin não parece ser uma pessoa regular desde o berço. E depois que muita gente pode ver o que Eva faz com Kevin como abuso de alguma forma. Por outro lado, se a gente acredita na narradora, parece que Kevin tem pré-disposição genética pra violência e pra falta de empatia.
Esta dúvida sobre a causa da psicopatia de Kevin é uma das discussões fascinantes que acompanham quem vê ou lê Precisamos Falar. Mas tem uma coisa em que o livro é muito mais interessante que o filme: na questão da maternidade. Eu fiquei tão revoltada enquanto lia que parei pra escrever isto:
Minha raiva vai aumentando enquanto leio Precisamos Falar sobre Kevin. Não gosto de Eva, a mãe e narradora. Certamente não gosto de Kevin. Ok, sei que ele vai virar um assassino em massa, mas eu já não gosto dele quando ele tem sete semanas de vida. É errado isso? E pior, quem eu gosto menos de todos é o pai, Franklin. E sei que devo ficar indignada com uma sociedade que condena o pai que fica em casa cuidando do bebê, ao mesmo tempo em que condena a mãe que trabalha fora em vez de cuidar do bebê (quantas vezes você já não ouviu que o problema da sociedade moderna é que as crianças não têm mães que as criam, porque essas megeras insistem em ter um trabalho remunerado?!). 
Mas no momento estou revoltada com o pai. E com Eva, por aceitar tudo tão passivamente. Senão, vejamos: ela não queria realmente ser mãe. Amava seu marido e estava feliz com a vida que tinha. Aceitou ser mãe pra alegrar o esposo. Aí o nenê nasce e meio que instantaneamente não gosta dela, e ela percebe que a maternidade, além de ser algo que ela não queria, não é prazeroso, pelo menos pra ela, e que amar o filho não é instintivo, que você tem que se apaixonar por ele. 
O bebê não para de chorar quando está perto dela. Horas e horas seguidas de berros, como se ele não suportasse sua presença. Ela, que tem uma empresa bem sucedida de guias de viagem, dá um tempo em seu trabalho pra cuidar do filho. O marido, que ganha muito menos que ela e é free lance (e de quem o bebê parece gostar muito mais), em nenhum momento pensa em largar a sua carreira. Pelo contrário: ele decide que, pelo bem do filho, a família deve vender o apartamento (que é de Eva) em Nova York e se mudar para o interior. E pronto, fim da discussão, porque o pai é um marido machista que nunca aceitaria ser sustentado pela esposa. E então Eva tem que largar o trabalho e qualquer chance de felicidade pra se adequar a um papel de mãe -– um papel que ela nunca quis. 
Ah, vá! Sabe o que eu faria? Sinceramente? Diria: então tá, querido, você se muda com Kevin pro subúrbio. Eu fico aqui trabalhando e visito vocês todo final de semana. Não quer? Então sinto muito, mas vamos nos separar. Você fica com o Kevin.
Desculpa. Pareço cruel e insensível? Acho que não. Franklin se realiza com a paternidade, ou com a parte da paternidade que envolve não ter que abrir mão de toda a sua vida para cuidar de um bebê que não para de chorar. Eva não se realiza com a maternidade, ou ao menos com a maternidade em tempo integral. Quem disse que ela deve abdicar de seus sonhos para levar adiante um projeto de vida que não é o dela? 
Certo, que pergunta ingênua! Sei quem disse: a sociedade. Todo mundo –- igreja, escola, mídia, toda essa instituição chamada família. Ao mesmo tempo em que a sociedade jura que uma mulher se realizará na maternidade, ela se esquiva de qualquer amparo social a essa mulher e à criança.
A partir do momento em que Eva é mãe, ela não tem mais saída -– será a única a ser criticada por qualquer coisa que seu filho fizer. 




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