Geral
Mises e a anarquia
Rodrigo Constantino
O grande economista liberal Ludwig von Mises deve estar se revirando no túmulo. O instituto que carrega seu nome publicou hoje um artigo que acusa qualquer liberal de defensor do crime. É isso mesmo: para o autor do artigo, todo imposto é roubo, e qualquer um que defende algum estado, ainda que mínimo, está compactuando com o crime. Funcionários públicos, por esta ótica anarquista radical, seriam todos criminosos. Um policial, um juiz, um militar; todos criminosos. Eis o que diz o autor:
"Não há nada de errado em dizer às pessoas que tributação é roubo, que regulamentação é transgressão, que leis antidrogas são agressão e roubo, que políticos são criminosos, e que o estado é uma monstruosa agência criminosa."
Nem vem ao caso, aqui, refutar tais pontos e mostrar certas contradições. Por exemplo, o fato de que Ron Paul, um político reverenciado por muitos desses anarquistas, vive à custa dos impostos há anos. Seria apenas mais um mafioso, ainda que lutando para reduzir o poder da máfia. Ainda assim, mafioso, e eu não poderia jamais admirar um mafioso. Os anarquistas conseguem. O pragmatismo deles é maior do que querem crer, pois se julgam os detentores do princípio absoluto da ética, uma pedra filosofal que, com base em um axioma apenas, responde a todas as questões complexas da vida em sociedade. Mas estou saindo do foco.
O mais importante é que este tipo de coisa está sendo defendida por um instituto que leva o nome do liberal Mises, um defensor da democracia e do estado, que repudiava a própria anarquia. Isso é inadmissível. E, justamente para resgatar Mises de seus "seguidores", resolvi postar abaixo inúmeros trechos de vários livros seus que deixam clara a sua postura em relação ao tema. Após o leitor terminar o artigo, não tenho dúvida de que o absurdo do que estão fazendo em nome de Mises saltará aos olhos. Infelizmente, muitos acabaram conhecendo Mises somente por meio do instituto. Reforço meu apelo: leiam os livros originais do autor! Ele era um grande pensador, defensor da liberdade individual e contrário aos diferentes sistemas que, na prática, acabam destruindo esta liberdade. Aproveitem!
"There is a school of thought which teaches that social cooperation of men could be achieved without compulsion or coercion. Anarchism believes that a social order could be established in which all men would recognize the advantages to be derived from cooperation and be prepared to do voluntary everything which the maintenance of society requires and to renounce voluntarily all actions detrimental to society. But the anarchists overlook two facts. There are people whose mental abilities are so limited that they cannot grasp the full benefits that society brings to them. And there are people whose flesh is so weak that they cannot resist the temptation of striving for selfish advantage through actions detrimental to society. As anarchist society would be exposed to the mercy of every individual. [...] Liberalism differs radically from anarchism. It has nothing in common with the absurd illusions of the anarchists. We must emphasize this point because etatists sometimes try to discover a similarity. Liberalism is not so foolish as to aim at the abolition of the state. Liberals fully recognize that no social cooperation and no civilization could exist without some amount of compulsion and coercion. It is the task of government to protect the social system against the attacks of those who plan actions detrimental to its maintenance and operation. [...] From this point of view liberalism assigns to the state the task of protecting the lives, health, freedom, and property of its subjects against violent or fraudulent aggression."
"Anarchism misunderstands the real nature of man. It would be practicable only in a world of angels and saints."
"[...] the teachings of utilitarian philosophy and classical economics have nothing at all to do with the doctrine of natural right. With them the only point that matters is social utility. They recommend popular government, private property, tolerance, and freedom not because they are natural and just, but because they are beneficial. [...] The Utilitarians do not combat arbitrary government and privileges because they are against natural law but because they are detrimental to prosperity."
"Government as such is not only not an evil, but the most necessary and beneficial institution, as without it no lasting social cooperation and no civilization could be developed and preserved. It is a means to cope with an inherent imperfection of many, perhaps of the majority of all people. [...] Not the State is an evil, but the shortcomings of the human mind and character that imperatively require the operation of a police power. Government and state can never be perfect because they owe their raison d'être to the imperfection of man and can attain their end, the elimination of man's innate impulse to violence, only by recourse to violence, the very thing they are called upon to prevent. [...] The main political problem is how to prevent the police power from becoming tyrannical. This is the meaning of all the struggles for liberty."
"It is useless to stand upon an alleged 'natural' right of individuals to own property if other people assert that the foremost 'natural' right is that of income equality. Such disputes can never be settled."
"Government means always coercion and compulsion and is by necessity the opposite of liberty. Government is a guarantor of liberty and is compatible with liberty only if its range is adequately restricted to the preservation of what is called economic freedom."
"Taxation is a matter of the market economy. It is one of the characteristic features of the market economy that the government does not interfere with the market phenomena and that its technical apparatus is so small that its maintenance absorbs only a modest fraction of the total sum of the individual citizen's incomes. Then taxes are an appropriate vehicle for providing the funds needed by the government."
"Que o governo e a polícia se encarreguem de proteger os cidadãos, e entre eles os homens de negócio e, evidentemente, seus empregados, contra ataques de bandidos nacionais ou do exterior, é efetivamente uma expectativa normal e necessária, algo a se esperar de qualquer governo. Essa proteção não constitui uma intervenção, pois a única função legitima do governo é, precisamente, produzir segurança."
"Liberalismo não é anarquismo, nem tem absolutamente nada a ver com anarquismo. O liberal entende claramente que, sem recorrer à compulsão, a existência da sociedade estaria ameaçada e que, por trás das regras de conduta cuja observância é necessária para assegurar a cooperação humana pacífica, deve estar a ameaça da força, se todo edifício da sociedade não deve ficar continuamente à mercê de qualquer um de seus membros. É preciso estar em uma posição para obrigar a pessoa que não respeita a vida, a saúde, a liberdade pessoal ou a propriedade privada dos outros a aceitar as regras da vida em sociedade. Esta é a função que a doutrina liberal atribui ao estado: a proteção da propriedade, liberdade e paz."
"As far as the government - the social apparatus of compulsion and oppression - confines the exercise of its violence and the threat of such violence to the suppression and prevention of antisocial action, there prevails what reasonably and meaningfully can be called liberty."
"Para o liberal, o estado é uma necessidade absoluta, uma vez que as tarefas mais importantes são sua incumbência: a proteção não só da propriedade privada, mas também da paz, pois na ausência da última os benefícios completos da propriedade privada não podem ser aproveitados".
"A defesa da segurança de uma nação e da civilização contra a agressão por parte de ambos os inimigos estrangeiros e bandidos domésticos é o primeiro dever de qualquer governo”.
"A democracia não só não é revolucionária, mas ela pretende extirpar a revolução. O culto da revolução, da derrubada violenta a qualquer preço, que é peculiar ao marxismo, não tem nada a ver com democracia. O Liberalismo, reconhecendo que a realização dos direitos econômicos objetivos do homem pressupõe a paz, e procurando, portanto, eliminar todas as causas de conflitos em casa ou na política externa, deseja a democracia".
"Por causa da paz doméstica o liberalismo visa a um governo democrático. Democracia não é, portanto, uma instituição revolucionária. Pelo contrário, ela é o próprio meio para evitar revoluções e guerras civis. Ela fornece um método para o ajuste pacífico do governo à vontade da maioria. [...] Se a maioria da nação está comprometida com princípios frágeis e prefere candidatos sem valor, não há outro remédio além de tentar mudar sua mente, expondo princípios mais razoáveis e recomendando homens melhores. Uma minoria nunca vai ganhar um sucesso duradouro por outros meios."
Essas são todas passagens de Mises em seus mais diversos livros, e não se tratam, como fica evidente, de trechos soltos fora de contexto. Ao contrário: Mises considerava fundamental o uso da coerção, do aparato estatal, para preservar a liberdade. Ele rejeitava a anarquia com veemência. Portanto, é revoltante ver que o Instituto Mises Brasil se transformou numa máquina de defesa justamente da anarquia, repudiada por Mises. Claro que o IMB não precisa concordar com tudo o que Mises pensava. Mas pregar o oposto, em seu nome, já é demais! Seria como criar um Instituto Rothbard Brasil e defender a social-democracia dos tucanos. E, se alguém ainda tem dúvida (o que acho muito improvável), seguem outros trechos, agora de seu mais importante biógrafo, Jorg Hulsmann, no livro "Mises: The Last Knight of Liberalism":
"In private correspondence with Bruno Leoni he [Mises] regretted that anarchist ideas were 'supported by some of the most intelligent men of the American rising generation,' but he had a ready psychological explanation at hand: anarchism was a 'reaction to the deification of the state.'
"He [Mises] had come in touch with the burgeoning anarchist movement already in the years leading up to the publication of Human Action, especially through his contacts with west-coast libertarians but also in correspondence with Rose Wilder Lane. His debates with these American radicals had remained fruitless. But after some twenty years, their extreme anti-statism had gained momentum. The best proof was the existence of the Circle Bastiat involving Rothbard, Raico, and Liggio. Raymond Cyrus Hoiles, publisher of the Freedom Newspaper chain, boasted of this growing impact in a letter to Mises, their first correspondence in thirteen years. Answering
Mises’s contention that no rational man ever proposed that the production of security be entrusted to private associations,..."
"Mises replied in a Hobbesian manner, objecting that in the absence of a monopoly of the use of coercive force, 'everybody would have continually to defend himself against hosts of aggressors.' He concluded: I think you err in assuming that your principles are those of the Declaration of Independence. They are rather the principles that led a hundred years ago the
Confederate States to refuse to recognize the President elected by the majority. Wherever and whenever resorted to, these principles will lead to bloodshed and anarchy."
E, sobre o próprio Rothbard:
"Mises also followed Rothbard’s subsequent writings and activities, often to his chagrin. A 1968 letter that Fertig wrote to Mises probably conveys Mises’s own feelings as well: Among the things which are really disturbing is the case of Mur...ray Rothbard. I enclose the current issue of National Review. Now he is allied with the New Left. Imagine that! Just a short while ago he was on a Committee that favored Castro and Cuba. It’s sad to see a brilliant mind like his go to pot that way."
Portanto, meus caros leitores, nunca confundam Mises com anarquia! E fica aqui o apelo aos membros do Instituto Mises Brasil: mudem o nome para Instituto Rothbard Brasil, pois tenho plena convicção de que Mises não ficaria nem um pouco feliz em ver seu nome associado não só à anarquia, como a uma forma radical de anarquia, que considera qualquer funcionário público (lembrando que o próprio Mises foi um) um criminoso.
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