O MENINO QUE CONHECI NO AVIÃO
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O MENINO QUE CONHECI NO AVIÃO


Semana passada fui à Brasília para poder assistir à audiência sobre a legalização do aborto no Senado, como contei aqui e aqui. 
No voo de ida, sentei ao lado de uma mulher negra e de seu filho, também negro. O menininho de 6 anos logo de cara foi perguntando pra comissária de bordo (não se fala mais aeromoça, é desrespeitoso) se ela conhecia o pai dele, que trabalhava na mesma companhia aérea que ela, no aeroporto de Brasília. Ela respondeu que não. A mãe explicou: 
- É que ele acha que todo mundo que trabalha na [companhia área, não vou citar qual, não vem ao caso] conhece o pai dele.
Fazendo o possível para ser simpática, a comissária, branca, perguntou pro garoto: 
- Ah, seu pai é um que se parece muito com você? 
E o menino:
- Ele é branco. 
A comissária até que se saiu bem. Sem pestanejar, ela disse:
- Acho que sei quem é. É um homem bem alto que tem um filho lindo, que mais parece um príncipe?
O guri, um pouco encabulado, fez que sim, e fim da conversa. Pelo menos com a comissária. Daí ele passou grande parte das duas horas e meia seguintes falando comigo. 
Ele e sua mãe, professora, eram muito simpáticos. Claro que era o menino que guiava a conversa, que girava em torno dele, do que ele queria contar. E ia tudo bem. Concordamos em nossa admiração às nuvens e na vontade de um dia poder tocar nelas e experimentá-las ("só um pedacinho"). Também falamos bastante sobre comida (ou falta de comida) no avião. Compartilhei com ele todo meu vasto conhecimento em viagens domésticas. Contei que ele podia pedir pra repetir o (ridículo) lanche, porque as pessoas não negam coisas a uma criança. Ele pediu o repeteco.
O problema foi quando ele começou a falar da sua escola. Ele e três de seus amigos haviam batido numa menina. Ele descrevia fisicamente, muito feliz, como tinham socado a garota. Eu fiquei incrédula; a mãe deu bronca nele. Ele tentou se justificar:
- Mas essa menina é muito chata, ela fala coisas erradas, cospe na gente. 
- Não importa, -- disse eu. - Você não pode bater em ninguém, muito menos numa menina, menos ainda quatro contra um. Super covardia. 
Ele narrou outros casos de violência. Tinha um menino que batia em todo mundo, que outro dia havia dado uma chave de pescoço nele, pelas costas. O pai do menino (o que trabalhava no aeroporto) até tinha recomendado que ele fizesse kung fu. 
- Eu quero fazer kung fu pra pegar ele de surpresa!
- Mas artes marciais não são pra isso, -- disse eu, - não são pra pegar de surpresa. É só pra se defender. 
E o menino continuou narrando vários outros atos de violência que aconteciam na escola dele. Eu só conseguia falar:
- Nossa, que horror! Eu não gosto de pessoas que batem. Gosto de pessoas que abraçam. 
Quando o avião chegou em Brasília e já estávamos no corredor, esperando a porta abrir, o garoto me perguntou:
- Você é crente?
- Não.
- Mas você tem que ser, senão a pessoa não vive muito.
A mãe interpelou:
- Respeita, filho.
- Ahn, eu não sou. -- respondi.
- Mas você não vai a igreja?, quis saber o menino.
- Não.
- Você fuma?
- Não, odeio cigarro. 
- Então você é crente. 
- Não sou não.
Não lembro exatamente como acabou esse diálogo. Porém, como a porta já estava pra abrir, decidi falar com ele baixinho pra ver se ele levava algo de positivo daquela viagem. Eu disse:
- Você é um fofo, mas não fica dando pontapés e socos nos seus colegas. Substitua por abraços. Sabe, paz e amor.
- Amor entre homens? -- o menino praticamente gritou. - Não pode!
Eu fiquei surpresa. Todo mundo olhando, e o menino repetiu o que havia aprendido tão bem. Eu insisti:
- Não só pode como deve: paz e amor.
- Homem tem que fazer guerra. -- concluiu o garotinho lindo de 6 anos.
Na saída, conheci seu pai, que já estava aguardando a família. Ele era muito amável e também era negro; o guri era a cara dele. Apertamos as mãos e eu fui embora, que já estava atrasada. 
No dia seguinte assisti a um debate no Senado em que um padre e vários deputados federais católicos e evangélicos vociferaram contra a legalização do aborto, aproveitando pra pregar sobre a necessidade da família tradicional, sobre a importância da maternidade e da manutenção do papel da mulher.
Tenho certeza que todos eles são contra a "ideologia de gênero" nas escolas, que eles consideram um projeto comunista/ feminazi/ gayzista para acabar com a família. 
Como se o menininho fofo que conheci no avião já não tivesse aulas de ideologia de gênero há anos. 
Desde seu nascimento, aliás. E ele foi um bom aluno, aprendeu direitinho. 
Deus proíba que a masculinidade violenta seja desconstruída!




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