Geral
O resgate dos direitos humanos
Flavia Piovesan, O GLOBO
"Engravidei duas vezes, e os dois bebês tinham o mesmo problema: anencefalia. Na primeira vez, era uma gravidez programada, desejada. Soube aos 3 meses de gestação que o bebê era anencéfalo. Foi muito triste. Optei pelo aborto legal, mas enfrentei muita burocracia. Se você não tem condições financeiras de contratar um advogado para acompanhar o processo, não consegue. (...), eu só tive a autorização judicial para interromper a gravidez com 7 meses e meio de gestação. (...) Fiz aborto numa época já de risco. (...) Só os pais sabem a dor que é viver este processo. Interromper a gravidez aos 3 meses poderia evitar tanto sofrimento." (Depoimento de Vanessa Oliveira no jornal O Estado de S. Paulo, em 11 de abril de 2012)
Se não houvesse obtido autorização judicial para interromper a gravidez, Vanessa Oliveira, em tese, estaria a responder criminalmente pela prática de aborto, sujeita a pena de detenção de 1 a 3 anos (artigo 124 do Código Penal). No Brasil, o aborto só não é punido se não houver outro meio de salvar a vida da gestante ou se a gravidez resultar de estupro. O aborto constitui um grave problema de saúde pública, sendo a 4ª causa de morte materna no Brasil. A ilegalidade do aborto leva à sua clandestinidade, que, por sua vez, leva à sua realização em condições inseguras, gerando um evitável e desnecessário desperdício de vidas de mulheres, sobretudo das mais vulneráveis.
Após 8 anos de polêmica, este foi o cerne do histórico julgamento do STF, ao autorizar a interrupção da gravidez em caso de anencefalia fetal, em 12 de abril último. A partir da decisão - que tem efeitos gerais, imediatos e vinculantes relativamente a todo Poder Judiciário e à administração pública -, a rede pública de saúde terá que assegurar à mulher que decidir pela interrupção o abortamento legal. Para a ciência, a anencefalia é uma anomalia fetal grave e incurável, incompatível com a vida, amparada por um diagnóstico 100% seguro.
Três são os principais impactos do mais importante julgamento do STF. O primeiro deles atém-se à afirmação dos direitos humanos das mulheres, ao assegurar-lhes a liberdade de prosseguir ou não na gravidez de fetos anencefálicos, à luz de suas convicções morais. Louva a autonomia das mulheres, sua dignidade e seu direito à saúde física e psíquica. Para o STF, obrigar a mulher a manter a gravidez em hipótese de patologia que torna absolutamente inviável a vida extrauterina significa submetê-la a um tratamento cruel, desumano e degradante, equiparável à tortura. Seria desproporcional proteger o feto que não sobreviverá em detrimento da saúde mental da mulher. Na luta pelos direitos das mulheres, a este caso emblemático se soma a relevante decisão do STF pela constitucionalidade da Lei Maria da Penha (em fevereiro de 2012).
O segundo impacto corresponde à observância da laicidade estatal. Defendeu o STF a separação entre os dogmas religiosos de domínio privado e a razão pública e secular, que há de guiar o Estado. Para o STF, a ordem jurídica em um Estado Democrático de Direito não pode se converter na voz exclusiva da moral de qualquer religião. A interpretação constitucional deve primar pelo respeito à principiologia e racionalidade constitucional, conferindo força normativa à Constituição. Uma vez mais, o STF se lançou como veículo da razão pública, reforçando o princípio da laicidade estatal já destacado nos casos concernentes ao uso de células-tronco embrionárias para fins de pesquisa científica (em maio de 2008) e à proteção constitucional às uniões homoafetivas (em maio de 2011).
Finalmente, o terceiro impacto relaciona-se à consolidação do STF como órgão guardião da Constituição, com a especial vocação de proteger direitos fundamentais. As Cortes Constitucionais têm assumido a especial missão de fomentar a cultura e a consciência de direitos e a supremacia constitucional, tendo seus julgados o impacto de transformar legislação e políticas públicas, contribuindo para o avanço na proteção de direitos. Como lembra o ministro Celso de Mello: "O Poder Judiciário constitui o instrumento concretizador das liberdades constitucionais e dos direitos fundamentais. (...) É dever dos órgãos do Poder Público - e notadamente dos juízes e dos Tribunais - respeitar e promover a efetivação dos direitos humanos."
A emblemática decisão do STF simboliza, assim, o triunfo dos direitos humanos, sob a perspectiva da saúde e da justiça social.
Comentário: Concordo com o geral, mas discordo do terceiro impacto, que não considero positivo. O STF não deve legislar, pois isso é usurpar poderes do Congresso. Ele deve ser apenas o guardião da Constituição, sem ativismo. "Fomentar a cultura e a consciência", portanto, não deveria ser função do STF, assim como "transformar legislação". Por fim, não gosto nada do termo "justiça social", algo vazio, desprovido de sentido objetivo, usado para obliterar o próprio conceito de justiça. Dito isso, o artigo merece reflexão, pois é mesmo a imposição de uma tortura sem razão de ser forçar uma mãe a carregar por 9 meses um feto ancencéfalo na barriga. Coisa de quem se preocupa mais com a "vibe" de sua cruzada moral do que com o sofrimento do ser humano de carne e osso...
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