Por Paulo Moreira Leite, em seu blog:Em dificuldade para encontrar um crime de responsabilidade que poderia vir a ser usado para acusar Dilma Rousseff, a oposição tenta mudar os termos do debate.
Num país onde a Constituição define nos artigos 85 e 86 que o impeachment só pode ocorrer a partir de um crime de responsabilidade, procura-se dizer que a decisão de afastar um presidente não passa de um conflito político – naquela visão simplória e rebaixada da palavra, segundo a qual é um vale-tudo parlamentar a ser vencido no corpo-a-corpo de quem tem mais votos.
Está errado. O fundo desse raciocínio pretende contrabandear, para o regime presidencialista, o tradicional "voto de desconfiança", que serve para derrubar governos que perdem a maioria sob o parlamentarismo.
Ocorre que essa regra está na essencia do parlamentarismo. Este é o regime que tem o Congresso como centro de todas as decisões relevantes, reservando tarefas mais limitadas ao Presidente da República. É uma solução coerente para este modelo – não com o nosso.
No parlamentarismo, os governos nascem do voto indireto. Reserva-se a senadores e deputados o poder de formar governos - e também de destituí-los, quando acham adequado.
A participação popular, aqui, limita-se ao direito de escolher o parlamentar que irá definir o Executivo. Você pode gostar ou não do parlamentarismo, regime que tem aliados e adversários em todos os partidos políticos mas isso não está em debate aqui.
O problema é que em 1988 os constituintes optaram pelo presidencialismo. A população fez mais. Em 21 de abril de 1993, foi às urnas votar num plebiscito onde a cédula admitia até o retorno da monarquia. O presidencialismo ficou com 69% dos votos, margem que não deixa muitas dúvidas sobre qual é a forma de governo preferida pela população.
Trinta anos antes, em janeiro de 1963, um plebiscito semelhante deu mais de 80% dos votos a favor do presidencialismo.
Pode-se especular por que isso acontece. Eu acredito que a causa principal reside na histórica desconfiança da população diante dos parlamentares. Isso se combina com a convicção, muito plausível, a meu ver, de que é menos difícil obter um governo comprometido com mudanças que interessam a maioria através de uma eleição presidencial do que por meio dos bastidores do jogo parlamentar, sujeito a uma dinâmica distante e fora do controle do cidadão comum.
(Não custa lembrar que, se vivêssemos no parlamentarismo, Eduardo Cunha teria grandes chances de ter sido eleito primeiro-ministro em fevereiro de 2015, certo?)
Justamente porque vivemos num regime presidencialista, a vontade popular, expressa diretamente, na urna, não pode ser negociada na bacia das almas do Congresso.
A importância fundamental do presidente como fonte de poder de Estado impede que possa ser afastado afastado em função de um erro cometido, da baixa popularidade ou qualquer outro motivo que pode derrubar um primeiro-ministro.
É preciso que tenha cometido um crime de responsabilidade, que é o ato mais grave que um chefe de Estado pode cometer, incompatível com sua permanência no cargo. Não é uma forma de proteger o presidente. É um cuidado para respeitar a vontade popular.
Este debate não é novo. Em setembro de 1992, o plenário do Supremo fez um debate sobre impeachment que tem grande relevância para o Brasil de hoje. Era um momento bem particular.
Naquele mês, a Câmara de Deputados aprovou a abertura da investigação contra o presidente Fernando Collor, que se afastou pelo prazo regulamentar de até 180 dias até que, em 29 de dezembro, preferiu renunciar definitivamente ao posto, quando parecia claro que acabaria condenado pelo Senado.
O debate de treze anos atrás ajuda a esclarecer quando conteúdo de uma denúncia pode ou não levar ao afastamento de um presidente. Também define o papel da Câmara e do Senado nessa decisão. Em qualquer caso, repudia-se uma decisão "política" no sentido vulgar que tem sido empregado pela oposição.
Num relatório que sintetiza a decisão aprovada pelo plenário, ministro Octávio Gallotti deixou registrado que cabe a Câmara verificar os fundamentos jurídicos da acusação. Mesmo falando em "juizo político", expressão que pode gerar interpretação dúbias, o ministro fez questão de esclarecer o que se deve entender por isso.
Diz que caberá aos deputados verificar "se a acusação é consistente, se tem ela base em alegações e fundamentos plausíveis, não sendo a acusação simplesmente fruto de quizílias ou desavenças políticas."
Ou seja: conforme esse entendimento, não vale, nem para admitir a acusação, limitar o debate à "política".
É preciso saber se "a notícia do fato reprovável tem razoável procedência."
A preocupação essencial com a defesa do mandato presidencial não termina aí. A STF também reforçou o papel do Senado no processo – o que revela mais uma cautela em nome do eleitor.
Se a denúncia pode ou não ser aceita pela Câmara, "será na esfera institucional do Senado, que processa e julga o presidente da República, nos crimes de responsabilidade, que este poderá promover indagações probatórias admissíveis."
Isso quer dizer – e neste ponto o presidente do Senado Renan Calheiros está coberto de razão no ofício enviado ao STF sobre o papel da instituição num caso de impeachment – que a decisão da Câmara tem um caráter inicial, no entender do plenário do Supremo de 1992.
Conforme o relatório de Gallotti, a acusação pode "somente materializar-se com a instauração do processo, no Senado."
O texto prossegue: "Neste é que a denúncia será recebida, ou não, dado que a na Câmara ocorre, apenas, a admissibilidade da acusação."
Alguma dúvida?
Nenhuma. Por um caminho ou por outro, a oposição sempre demonstra falta de respeito pelo voto popular.
(Boa parte das informações desse texto se encontram na Medida Cautelar na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n0. 378 enviada pelos advogados Anderson de Oliveira Noronha e Eduardo Pedroto de Magalhães ao ministro Edson Facchin em 11/12/2015).
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