Por Luciano Martins Costa, no Observatório da Imprensa:A Folha de S.Paulo e o Globo trazem em suas edições de segunda-feira (27/5) duas reportagens que rompem, de certa maneira, o longo silêncio da imprensa sobre as mudanças que vêm ocorrendo no perfil demográfico e de renda da sociedade brasileira por conta dos programas sociais.
O jornal paulista apresenta um olhar crítico, observando que a renda dos mais pobres subiu no atual governo, mas essa população ainda sofre em condições de vida inaceitáveis. O jornal carioca faz uma abordagem mais otimista, analisando a melhoria das oportunidades de emprego e renda dos negros no Brasil.
A Folha usa o Índice de Desenvolvimento da Família, criado pelo próprio governo para detalhar o acompanhamento de resultados dos programas de distribuição de renda, para mostrar que o programa Brasil sem Miséria não resolve completamente o desafio da pobreza extrema. O interesse manifesto pelo jornal é mostrar que “o governo Dilma Rousseff melhorou a renda dos pobres, mas não solucionou seus níveis miseráveis de acesso a emprego e educação”.
O diário paulista cumpre seu papel ao cobrar uma solução completa para o problema social, mas erra ao confundir um programa emergencial de combate à miséria com a questão mais ampla da redução de diferenças sociais.
Embora a pauta devesse levar em conta que o aumento da renda é apenas o ponto inicial de alavancagem da mobilidade social, que se completa com outras medidas, como aconteceu nos primeiros anos do Bolsa Família, é interessante observar como essa questão começa a frequentar as preocupações da imprensa sobre as condições de vida dos brasileiros mais pobres.
Na história do jornalismo brasileiro, o ponto alto das reportagens de cunho social já tem mais de 50 anos e aconteceu em 1960, quando o repórter Audálio Dantas descobriu os diários da catadora de papéis Carolina Maria de Jesus. Curiosamente, aquela reportagem de Dantas também foi publicada originalmente na Folha de S.Paulo, mas não tratava de índices oficiais de pobreza: o repórter simplesmente deu voz à mulher favelada e depois transformou seu caderno de anotações em livro de sucesso internacional, traduzido para mais de dez idiomas.
Desde então, o desafio da miséria frequentou a imprensa nas duas décadas seguintes, principalmente por conta dos movimentos populares apoiados pela igreja católica, mas o tema simplesmente desapareceu das páginas dos jornais no início deste século, substituído pela pauta da violência.
Dívida socialOs indicadores surpreendentes da ascensão de uma nova classe de renda média, que praticamente sustenta a economia brasileira, demoraram a ser assumidos pela imprensa. Já faz dez anos que se iniciou esse processo, marcado pela consolidação de programas sociais de transferência condicional de renda, e há muitos indicadores a serem analisados.
O Globo aborda, na segunda-feira (27), uma década de queda na desigualdade étnica, mostrando como cresce a taxa de emprego e renda dos negros, e de como esse grupo étnico passa a ter uma presença maior entre os empregadores.
Uma das fontes da reportagem é um estudo do economista Marcelo Paixão sobre empreendedores negros. Embora persistam importantes desigualdades étnicas e de gênero, ele constatou que a proporção de negros entre os empregadores aumentou de 22,84% em 2003 para 30,19%, em 2013. Entre as mulheres negras, que historicamente encontram maior dificuldade de inserção no mercado de trabalho, o desemprego caiu de 18,2% para 7,7%, no mesmo período. Essa nova circunstância é acompanhada pelo aumento da escolaridade entre negros e pardos, o que acrescenta aos índices de renda o fator positivo da autoestima.
O novo perfil da população negra acompanha o fenômeno da mobilidade social e revela alguns pontos interessantes do processo gradativo de redução das desigualdades. Os brasileiros que se declaram negros ou pardos somam 100,5 milhões de pessoas, ou 51% da população total do Brasil. Desse total, 50% está na classe média de renda, 39% ainda são considerados pobres e apenas 11% alcançaram a classe de renda alta.
Levando-se em conta que, entre os não negros, 52% são de classe média, 29% estão na classe de renda alta e apenas 19% são considerados pobres, pode-se constatar com facilidade que as diferenças sociais ainda têm um forte componente étnico.
Embora as duas reportagens ainda contenham poucos elementos para um retrato completo das mudanças que têm ocorrido no Brasil, é importante que a imprensa registre alguns aspectos desse processo, ainda que a intenção implícita, como no caso da Folha, seja de fazer restrições aos programas sociais.
Para o leitor atento, o importante é constatar que os programas de transferência de renda funcionam e que as políticas de cotas são uma forma eficiente de ajustar parte da dívida social que o Brasil tem consigo mesmo.
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