PIADAS DE ESTUPRO PODEM SER ENGRAÇADAS?
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PIADAS DE ESTUPRO PODEM SER ENGRAÇADAS?


A Terra vista do mundo da lua

Semana passada recebi convite para participar de um painel na II Semana Direito e Gênero da Universidade de Brasília. O painel será “Estupro não tem graça: Repensando o simbolismo no humor”. Fiquei super honrada com o convite e já o aceitei, e dia 28 de junho estarei em Brasília para uma palestra. Mas ainda não sei direito o que apresentar. Queria pedir dicas preciosas suas, minhas queridas leitoras e leitores. Por exemplo, tirando a piada absolutamente hilária do Rafinha Bastos (“Toda mulher que eu vejo na rua reclamando que foi estuprada é feia pra caralho. Tá reclamando do quê? Deveria dar graças a Deus. Isso pra você não foi um crime, e sim uma oportunidade. Homem que fez isso não merece cadeia, merece um abraço”), você conhece alguma outra piada de estupro? Se conhecer, por pior que seja — e não se acanhe, porque vai ser difícil competir com a do Sr. Bastos —, conte aqui nos comentários (ok, vai ser uma triste caixa de comentários, eu sei).
Claro, quanto à pergunta do título, a resposta chega com outra pergunta: “engraçadas pra quem?”. Rafinha nunca foi estuprado, nem nunca parou pra pensar que mulheres (e crianças, e homens) são estupradas cotidianamente. É provável que seu público-alvo tenha essa mesma mentalidade que já ouvi de um leitor aqui no blog: “O quê que tem ser estuprada? É só sexo! Eu gostaria de ser estuprado por um bando de gostosas!”. Talvez vivendo num mundo de fantasia desses, em que estupro é só sexo e alegria, sem nada de violência, dor, humilhação, subordinação, dê pra pensar que estupro é hilário. Em outras palavras, parece que estupro só pode ser engraçado se não for estupro.
Eu parto da hipótese que há certos temas que são terríveis demais para serem engraçados, e estupro é um deles. Mas e se de repente o alvo da crítica numa piada sobre estupro não fosse a vítima (no caso do Rafinha, a mulher feia que teve a oportunidade de fazer sexo), e sim o estuprador, ou o estupro em si?
Tipo: aqui tem um vídeo de stand-up do Louis CK, em que ele fala de quando tinha 20 anos e saiu com uma garçonete. Enquanto eles estavam se beijando, Louis tentou colocar a mão nos seios dela, e ela não deixou, e ele fez o que qualquer pessoa consciente faria, que é respeitar os desejos d@ parceira. Mas no dia seguinte, a moça diz pra ele que lamenta que eles não tenham transado e que gosta que um homem continue e force o sexo, apesar da sua negativa. A reação dele: “What are you, out of your f*cking mind?!”. Ele não vê estupro como algo aceitável. Em compensação, nessa outra routine Louis diz que, se tivesse uma máquina do tempo, voltaria ao passado não para matar, mas para estuprar Hitler. E faz piada em cima do trauma de vítimas de estupro.
Num show bem conhecido chamado “Sick and Tired”, Wanda Sykes fala de como seria ótimo se nós mulheres tivéssemos uma “vagina removível”. Assim, se a gente quisesse sair à noite, e se um maníaco nos atacasse, poderíamos dizer “Deixei em casa. Não tenho nada de valor aqui comigo”. Ela fala de toda a liberdade que teríamos: poderíamos até visitar ídolos do esporte às duas da manhã no seu quarto de hotel! (Quando a gente ativa a nossa schemata, o nosso conhecimento prévio, pra compreender que ela está falando de casos de estupro que aconteceram nessas circunstâncias, a piada fica bem menos engraçada).
Há também um vídeo famoso (e infame) do South Park em que George Lucas e Spielberg estupram Indiana Jones à maneira de Acusados e Amargo Pesadelo. Apesar de eu gostar pacas de South Park às vezes, o vídeo em questão eu achei horrível, quase impossível de assistir. Mas deve ter gente que considerou genial esse chiste de como os produtores estariam “explorando a franquia” do arqueólogo aventureiro.
Ontem fiquei deprimida ao entrar num fórum antigo, em inglês (foi o primeiro item a aparecer no Google quando eu digitei rape jokes), em que rapazes tentavam provar que sim, piadas de estupro podem ser divertidas. Na época em que o fórum estava ativo, um cara chegou lá e disse que não havia nada de engraçado num tema desses, já que sua namorada havia sido estuprada. A reação de todos os outros participantes do fórum não foi de empatia. Foi de zombar do cara e de dizer que a namorada adorou ser estuprada, e provavelmente mereceu. Isso, my friends, é a cultura de estupro de que nós feministas tanto falamos. Uma cultura em que estupro é visto como algo tão natural e inevitável que, se você pesquisar “menina estuprada pelo pai” numa busca da internet, vai encontrar um monte de vídeos pornôs com essa trama. E nenhum link pra um centro de apoio para uma menina que realmente tenha sofrido essa violência e esteja procurando ajuda.
Do fórum dos rapazes que riem de estupro peguei duas “piadas” (muitas, muitas aspas). Perceba como, nesta primeira, não basta ser misógino -- vamos aproveitar logo e fazer um combo de preconceitos (anota aí, Rafinha, pra usar no seu show):
"Como estuprar uma mulher negra?”
"Do mesmo jeito que se estupra qualquer outra mulher, mas pensando que ela é branca”.
E esta. A gente precisa acessar nosso conhecimento prévio pra entender o troço. O que acessamos pra rir?
Um homem e uma garotinha estão andando numa floresta à noite e a garotinha fala pra ele: “É assustador aqui”. O homem olha pra ela e responde: “Você está assustada? E eu, que vou ter que sair daqui sozinho?”
E aí que está. A gente tem esse conhecimento prévio de sobra. A gente vê notícias em que casos como um homem estuprando e matando uma garotinha são comuns. Dezenas de mulheres em todo o mundo são violentadas e mortas todos os dias, em geral por conhecidos e homens de confiança. Muitas de nós temos experiências de quando fomos estupradas, ou de quando conseguimos escapar por pouco de um estupro. E isso tira toda a graça.
Eu não sei. Talvez uma ou outra piada sobre estupro pudesse ser engraçada se o assunto fosse levado mais a sério pela sociedade. Se tanta gente não achasse que estupro é sexo e, assim, uma bela chance pra uma mulher feia tirar o atraso. Se tanta gente não achasse que a vítima quis. Ou que a vítima provocou. Ou que a vítima bebeu demais. Ou que só estranhos numa rua deserta à noite cometem estupro. Se tanta gente não visse essas idiotices como verdades absolutas, ou seja, se estupro não fosse algo tão corriqueiro na nossa sociedade, quem sabe a gente pudesse rir de piadas sobre o tema. Ou não.
E aí eu volto a achar que quem é capaz de fazer piada de estupro,
ou de rir de piada de estupro, é só quem está lá num mundo distante, do alto do seu privilégio, em que estupro não faz parte da realidade. Em que estupro é só uma mera fantasia sexual.




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