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POLITICAMENTE INCORRETO NÃO É TRANSGRESSOR, RAFINHA
Rafinha, a verdadeira vítima do mundo de hoje Uma leitora na sexta me mandou por email a reportagem da Rolling Stones que retrata um tal de Rafinha Bastos que, no seu show de stand-up comedy, faz piadas sobre estupro e afirma que "homem que estupra mulher feia não merece cadeia, merece um abraço". Eu digo “um tal” porque mal sei quem é esse Rafinha. Nunca vi CQC. Não sei distinguir um Danilo Alguma Coisa de um Rafinha (o Marcelo Tas eu sei, porque eu via TV na década de 80). Eu sabia, antes de ler a reportagem, que esse Rafinha foi escolhido por não sei quem o homem mais influente do Twitter. Tipo, grandes coisas da humanidade. Não sei se foi ele ou o tal Danilo que já fez declarações racistas e, do alto de seu privilégio branco, não viu nada de mais em chamar negros de macacos. Sei que eles fazem humor com vítimas de terremoto, com gente com necessidades especiais, com gordos, enfim, com tudo. E deve ter gente que adora esse tipo de humor e faz dele uma bandeira: uma bandeira contra o politicamente correto. Pra essa galera (que não é pequena; aliás, é muito mais gente do que nós que criticamos), a pior praga que tem neste planeta é o politicamente correto. Não é a fome. Não é a guerra. Não é o fato que mulheres são estupradas. Não, tudo isso nem é problema. Problema mesmo é o politicamente correto. Porque como é que pode?! Durante séculos esse pessoal pôde escrever e falar besteiras à vontade, fazer piada com tudo, e de repente vem uma patrulha criticá-los?! Onde é que esse mundo vai parar? Chegamos a um ponto em que quase sempre que alguém bate no peito pra dizer que é politicamente incorreto, você pode se preparar porque lá vem asneira contra qualquer grupo que costuma ser discriminado. O problema não é um grupo ser discriminado, entende? O problema é alguém te achar uma besta quadrada por você fazer piada com um grupo que costuma ser discriminado! Eu não sou a pessoa mais adequada pra falar de humor. Já me meti em encrencas por rir de coisas consideradas inapropriadas por algumas pessoas. Mas, sei lá, rir é uma coisa, fazer piada é outra (exemplinho: quando a sessão adolescente entoou um coro de "Viado! Viado" no final de Homem Aranha, por ele não ficar com a Mary Jane, eu ri. Mas nunca iniciaria ou me juntaria a um coro desses). Rafinhas e afins têm fãs justamente porque falam esses preconceitos na cara dura. Aliás, seus fãs não se acham preconceituosos. Eles chamam esses preconceitos que seus ídolos disparam de “verdades”. Mas o que tem de verdade em dizer que uma mulher feia tem sorte por ser estuprada? Esses fãs acham que estupro é sexo e não violência, é isso? Acham que alguém pode ser sortuda por ser vítima de um crime terrível? Acham que só mulheres bonitas costumam ser estupradas? Ah, então a verdade é uma só: esses fãs não sabem absolutamente nada sobre estupro! Estupro é só uma abstração pra eles, uma realidade tão distante que eles podem rir à vontade! Se eles conhecessem alguma pessoa que foi estuprada, provavelmente seria difícil rir dessas “verdades”. Isso de dizer que mulher feia teve sorte por sofrer um estupro é o maior clichê. Tanto que quase todo mundo já ouviu isso, não? Um dos primeiros posts que escrevi, mais de três anos atrás, falava de uma blogueira americana e dos comentários misóginos que recebeu de masculinistas (na época eu nem sabia o que era isso; nunca tinha ouvido o termo feminazi) quando contou que fora estuprada. “Foi a melhor transa que você já teve” e “Você deveria se considerar sortuda que algum homem achou uma ogra horrorosa como você 'estuprável'” foram apenas alguns dos comentários. Engraçados, né? Se ela não riu, é porque não tem senso de humor! Faz um mês, mais ou menos, eu estava vendo um dvd emprestado por amigos. Era um show de um grupo de humor argentino, o Les Luthiers. Eu não tava achando nenhuma maravilha, mas os senhores eram simpáticos, pareciam estar se divertindo, e tocavam uns instrumentos e cantavam. Até que fizeram piadinha com estupro. Exatamente essa do Rafinha Tão Inovador. Eles falaram de uma vizinha que fora violentada, e como, no caso dela, foi a maior sorte, porque ninguém fazia sexo com ela mesmo. Só faltaram dizer que o estuprador merecia um abraço. Aí eu parei de ver o dvd e decidi que, por mais que eu goste dos meus amigos, não tenho que ter o mesmo senso de humor. Blergh. Olha, eu já achei o politicamente correto um exagero. Mas sério, deve fazer pelo menos uns cinco anos que não acho mais. Quando li o termo considerado aceitável pra se tratar um cego (primeiro era visually impaired, depois virou visually challenged) eu achei muito estranho. Mas aí comecei a pensar que, pô, a palavra cego só é associada a coisas negativas, então não deve ser legal ser chamado de cego, mesmo que você tenha uma deficiência visual (aqui todo um guia de como se referir a pessoas com deficiências). Eu vou aprendendo à medida que posso. Parei de usar retardado porque é um baita desrespeito pra quem tem necessidades especiais falar disso como se fosse uma ofensa. A primeira vez que me falaram que não é pra dizer homossexualismo, porque isso remete à doença (afinal, ninguém fala em heterossexualismo), e sim homossexualidade, foi aqui no blog (viado eu nunca usei, sempre considerei ofensivo). Aprendi que se deve dizer a travesti (e não o travesti) esses dias. Mas ainda tem um monte de termos que não sei usar corretamente por pura ignorância. Mas eu quero aprender. Exige esforço, exige criatividade. Às vezes tenho de substituir palavras. Mas se um grupo que costuma ser discriminado pede pra ser tratado de certa forma, ele merece ser ouvido. Se eu posso, através da escolha das minhas palavras, impedir que um grupo continue sendo marginalizado, eu vou tomar cuidado. Vale o esforço.A linguagem é uma construção social em constante mudança. Termos são incorporados, abandonados, modificados, todo santo dia. A gente pode mudar. A gente pode deixar de usar um tipo de vocábulo porque ele é ofensivo a um grupo (por exemplo, o cara quer continuar chamando gay de viado, mas não quer ser chamado de homofóbico! Ah, não quer? Então pare de se comportar como um!). Eu acho ótimo estarmos vivendo numa época em que boa parte das pessoas fica indignada com piadas contra minorias. Sim, muitas vezes o humor é transgressor. Mas o que esse pessoal que ataca minorias pra fazer piada precisa entender é que eles não estão transgredindo nada. Seus tataravôs já eram racistas, gente. Pode ter certeza que seus tataravôs já comparavam negros com macacos. Aposto como seus tataravôs já faziam gracinhas sobre a sorte que uma moça feia teve em ser estuprada. Vocês não são moderninhos, não são ousados, não são criativos. Vocês estão apenas seguindo uma tradição. E, se naquela época já não era engraçado, imagina agora? Rebeldia é querer mudar o mundo, começando pela forma que falamos. Não há nada de novo ou de rebelde em eternizar velhos preconceitos, Rafinha.
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