PRIMEIRO BEIJO GAY DA NOVELA BRASILEIRA
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PRIMEIRO BEIJO GAY DA NOVELA BRASILEIRA


Foi anteontem, em Amor e Revolução, novela do SBT na faixa das 22:15 horas (ou tão logo termina a novela da Globo), o primeiro beijo gay (veja aqui). Era pra ter sido na quarta, mas, como tava criando expectativa, deixaram pra quinta. Foi até anticlimático, porque, convenhamos, é só um beijo, pô! É impressionante, absurdo até, que um simples beijo continue sendo tabu. Eu lembro bem de uma novela global (só não lembro qual) que eu não acompanhava. Lembro porque assisti o último capítulo no alojamento dos Jogos Abertos de Santa Catarina com um grupo imenso de gente que era fanática pela novela, e havia todo um suspense se esse último capítulo iria ou não mostrar um beijo entre dois namorados gays. Isso deve ter uns nove anos. Toda vez que os dois rapazes se aproximavam um do outro, vinha um barulho ensurdecedor da plateia. Um tipo de histeria mesmo, como se todos aqueles atletas reunidos na cantina do alojamento fizessem questão de esfregar na cara dos outros a sua heterossexualidade. E, pra deixar claro que eram homens com H e mulheres com, sei lá, m maiúsculo, precisavam expor seu desagravo a qualquer ato de carinho homossexual. O beijo não saiu naquela novela, mas só a ideia de um afaguinho gay foi suficiente pra causar comoção. No ano seguinte teve Mulheres Apaixonadas, novela que eu seguia, e lá havia um casal de adolescentes lésbicas, lindas, meigas, totalmente estruturadas. Mas nada de beijo. Nesses casos todos, tenho certeza que o conservadorismo do público falou mais alto. A Globo mantém discussões em grupo em que sonda espectadores o tempo todo, e imagino que esse pessoal veja homossexualidade como algo desagradável. Não posso acreditar que o meio artístico composto por atores, diretores e autores de novelas seja homofóbico. Isso vem do público. E como as emissoras fazem qualquer coisa pra não perder ibope, não confrontam preconceitos. Pelo contrário: na sanha de satisfazer seu público a qualquer custo, reforçam todo o machismo, racismo e homofobia do nosso dia a dia.
Fico feliz que Amor e Revolução tenha rompido essa barreira. Esta novela com ibope tímido (será mesmo que só tem dois por cento de audiência? Ou isso se deve à manipulação de dados, já que a empresa Ibope tem laços pra lá de estreitos com a Globo?) vem rompendo várias barreiras. Eu tento assistir todos os dias (menos fins de semana), e estou gostando. Claro, muitos diálogos são bobinhos (parecem mais discursos; o maridão vive reclamando que ninguém fala daquele jeito), algumas interpretações deixam a desejar, as cenas de ação são toscas, vários atos não se encaixam no contexto histórico (não tinha tanta guerrilha clandestina em 64! O pessoal só passou a pegar em armas mais tarde, depois do AI-5), mas nada disso importa. O que importa é que a trama não se cansa de passar imagens horrorosas de tortura, e que fica bem claro quem são os mocinhos e os vilões nessa história. É muito forte a cena em que uma mulher, mãe, boa gente, que vem sendo torturada e estuprada por um bando de policiais e militares sádicos, vira pra um deles e diz: "Algum dia você vai pagar por isso". E o cara, profético, convicto, responde que não vai, não. Cenas como essa fazem com que a gente exija uma revisão da anistia. Quero uma Comissão da Verdade. Quero que esses assassinos e torturadores sejam punidos. Outras ditaduras sul-americanas tiveram a coragem de ajustar as contas com o passado, e isso é fundamental para que esse passado não volte nunca mais. O Brasil precisa fazer isso também. Eu, que sou uma pessoa bastante politizada, pensava que não era o momento desse acerto de contas, que é melhor não revirar traumas. Por causa da novela, mudei radicalmente minha opinião. É covarde o país que não aceita enfrentar seus fantasmas.
Além das cenas de tortura, tem também os depoimentos de sobreviventes no final de cada capítulo. Só aquilo já é um documento precioso. Olha, se essa novela passasse na Globo, todo mundo só estaria falando em golpe, tortura, guerrilha, anistia. O país inteiro estaria respirando a ditadura militar. Como a novela passa no SBT, dá pra varrer pra baixo do tapete, pra sorte dos militares e demais reaças que insistem em chamar golpe de revolução.
Mas voltando ao beijo, ele também foi um ato político de suma importância, ainda mais agora em que a união estável foi aprovada, em que se discute o projeto que criminaliza a homofobia, e em que dinossauros bolsonarianos distribuem cartilhas preconceituosas feitas com dinheiro público. O beijo aconteceu entre duas mulheres, uma editora e dona de um jornal (Giselle Tigre) e a outra, advogada nesse jornal (Luciana Vendramini). Essa editora, hétero, é apaixonada por um jornalista mais velho, casado, fiel à mulher. E a advogada declara seu amor por ela, e ela responde que nem se imagina beijando uma mulher. O beijo é bem intenso, mas os diálogos que as duas trocam é que são essenciais. A advogada diz que mulheres são ensinadas a não explorarem sua sexualidade, e que é imensa a raiva contra moças que mostram poder ter prazer sem a participação de um homem. Muito bom. Se isso conscientizar alguma pessoa mais atrasadinha das ideias a aceitar as diferenças, já terá valido a pena.
Sei que tem gente reclamando porque nenhuma das duas personagens é mesmo homossexual, mas acho que o pessoal tá vendo por uma ótica de hoje. A novela se passa em 64, quatro anos antes de Stonewall, uma das primeiras mobilizações gays no mundo. Naqueles tempos, a psiquiatria ainda via homossexualidade como doença, e a "cura" pedia choque elétrico. Tudo aquilo que Bolsonaro
e seus odiosos seguidores dizem atualmente só não era considerado lugar comum em 64 porque havia pouquíssimos gays assumidos, então as pessoas podiam fingir que esse pessoal esquisito não existia. Portanto, considero a escolha das personagens para o primeiro beijo gay condizente com o período retratado. Além do mais, gente, até hoje existe mulher que foi hétero a vida toda e que se descobre gay depois dos trinta, quarenta anos. E existe lésbica que tem tesão por homem, ué (uma das minhas melhores amigas, lésbica assumidíssima, disse que ela adora o corpo masculino, mas só se apaixona por mulheres. Acho que hoje ela se relaciona apenas com mulheres, o que é bem parecido com o que diz a personagem da Vendramini).
Há também potencial pra um outro relacionamento gay na novela, este entre um diretor de teatro, que parece ser bissexual, e um torturador infiltrado. Vamos ver no que dá. O bom é que o autor Tiago Santiago não aparenta ter medo de ousar. Li em algum lugar que os primeiros não sei quantos capítulos já estão prontinhos, mas que vai chegar uma hora em que o público é que vai decidir algumas coisas. Aí é que eu tenho medo.

Nos comentários surgiu uma discussão sobre se o beijo foi menos transgressor por ter sido entre duas mulheres (não entre dois homens), sendo que este é um fetiche masculino. A Aoi Ito escreveu ótimas respostas que foram transformadas neste guest post importante.




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