Toda vez que Obama perde num grande estado, vêm à tona as mesmas questões: será que os EUA estão preparados pra ter um primeiro presidente negro? Meu impulso inicial, a julgar pela segregação que existe aqui, e também pela insistência com que se faz a pergunta (afinal, se os EUA estivessem preparados, fariam essa pergunta tantas vezes?), seria responder não. Mas converso com bastante gente branca e de mais idade (o maior alcance de Obama está entre jovens e negros) que vai votar nele. O problema é que quase toda essa gente é mais intelectualizada. Entre a classe operária branca, a aceitação a Obama é muito menor. Essa classe, por mais que costume votar nos democratas, não é fiel. Quando não gosta do candidato democrata, vota no presidenciável republicano sem dor na consciência, como fez com Reagan.
Ainda assim, parece que os EUA estão mais preparados para eleger um negro do que uma mulher. Tive essa revelação ao ver um clássico de terror de 1968, A Noite dos Mortos Vivos. Ok, sei que é uma conexão exótica, mas fique comigo. O filme foi e continua sendo revolucionário por ter um herói negro. Em Hollywood, negros raramente são heróis. Pelo contrário, em filmes de terror geralmente são as primeiras vítimas. Bom, o diretor George Romero colocou um herói negro pra protagonizar seu clássico bem na época dos maiores protestos pró-direitos civis. Seu herói acaba alvejado e morto, exatamente como ocorreu com Martin Luther King no mesmo ano. Essa coincidência chamou muito a atenção, mas no filme existem também três mulheres, todas brancas, que são umas portas. Não só não ajudam e são completamente indefesas e histéricas, como também atrapalham os homens. Elas constituem o mal menor, que precisa ser defendido do mal maior, zumbis. Vamos ver... 1968, o ano que dizem não ter terminado, não foi apenas marcante por conta dos protestos dos negros. Foi o auge do movimento feminista também. E aí a gente tem um filme em que o herói é negro, ao mesmo tempo em que três mulheres aparentam ser uma maldição pior que zumbis (elas já são meio zumbis, antes até do contágio).
Não sei, é difícil acreditar, mas talvez os EUA continuem sendo ainda mais machistas que racistas. Os preconceitos contra uma candidata mulher não são exclusividade deles, lógico. A gente ouve exatamente a mesma coisa contra a Marta Suplicy toda vez que ela teima concorrer em São Paulo, e vai ouvir muito mais se a Dilma Rousseff for candidata a presidente. Tipo assim, não ouvi ninguém chamar o Obama de “nigger”, um hiper insulto que, se 1968 tivesse terminado de fato, não existiria mais hoje. Mas é corrente chamarem a Hillary de “bitch”. Se ela se mostra durona demais, é uma vadia e perde sua feminilidade, porque poder não é privilégio feminino. Se ela fica com a voz embaçada durante um discurso, é sensível demais, mulher demais, e não tem a força necessária pra ser presidente, um cargo que exige “cojones”. E claro que ela sempre será avaliada por sua aparência física porque, afinal, é mulher, e mulher precisa cumprir seu papel decorativo. Se ela aparentar ter sua real idade, é uma velha, não se cuida, e está um caco; se ela põe Botox ou faz plástica pra esconder sua real idade, é uma perua fútil e falsa. Sem falar que candidata-mulher seguramente tem um marido que manda nela, e será o real presidente no caso de vitória (note que você nunca ouviu falar isso de uma primeira-dama. E note que é tão raro uma mulher ser presidente que nem existe um termo pro marido – primeiro-damo?).
Mas, voltando à analogia dos zumbis, não sei qual é o mal maior pros americanos: a economia em frangalhos, a guerra no Iraque, ou um terceiro mandato pros republicanos. É um péssimo indício que, com a situação delicada do país, um candidato republicano como John McCain, que representa continuidade da política atual, tenha índices tão altos nas pesquisas. Independente de quem vier a ser o presidenciável democrata, um negro ou uma mulher (ao que tudo indica, será Obama, apesar da força de Hillary nas primárias recentes), os republicanos parecem sair com vantagem. Enquanto McCain já é candidato oficial desde o início de março, pros democratas a indefinição pode se arrastar até agosto. E o candidato democrata, ou negro ou mulher, ainda terá que derrubar todos os obstáculos a mais por sua raça e sexo seguir sendo discriminados. Não estamos mais em 1968. Mas quarenta anos depois, o que mudou mesmo?