“O MUNDO É ASSIM”, DIZ COLUNISTA SOBRE CASO DE RACISMO
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“O MUNDO É ASSIM”, DIZ COLUNISTA SOBRE CASO DE RACISMO


Ester, que foi mandada pela diretora da escola a alisar o cabelo

Eu nem ia falar do caso envolvendo uma escola particular de SP e a estagiária Ester, mas um leitor me enviou um email revoltado com uma coluna que leu, e pediu a minha reação. Então, ao caso, que até já saiu no Jornal Nacional, noticiário-chefe de uma emissora cujo diretor de jornalismo jura que Não Somos Racistas (este é o título de seu livro, e ele não é irônico). Ester, negra (e, se me permite a opinião irrelevante, belíssima), 19 anos, estudante de pedagogia, foi contratada no começo de novembro para ser estagiária de marketing no Colégio Anhembi Morumbi. Ela ficava ao lado da recepção, e uma de suas funções era mostrar a escola aos pais de alunos interessados. Logo que chegou, passou a receber recados da diretora para prender o cabelo e não circular pelos corredores. Finalmente, a diretora a chamou para uma reunião onde, segundo Ester, lhe foi dito: “'Como você pode representar o colégio com esse cabelo crespo? O padrão daqui é cabelo liso'". A diretora também lhe disse que iria arranjar umas camisetas para que Ester cobrisse os quadris.
Abalada com a "reprimenda", Ester primeiro foi chorar no banheiro. Depois, corajosa, foi a uma delegacia denunciar o racismo praticado contra ela. Fez um boletim de ocorrência de acordo com a Lei Estadual nº 14.187/10, que prevê punição a "todo ato discriminatório por motivo de raça ou cor praticado no Estado por qualquer pessoa, jurídica ou física".
A escola lançou nota se defendendo e, mais uma vez, metendo o pé pelas mãos. Um trecho diz: “o colégio zela pela sua imagem e, ao pregar a 'boa aparência', se refere ao uso de uniformes e cabelo preso". “Boa aparência”, qualquer pessoa honesta que trabalha com Recursos Humanos pode confirmar, é um código usado para excluir candidatas ao emprego (não costuma ser aplicado pra homens) que estejam fora do padrão de beleza (gordas, moças com necessidades especiais, e, principalmente, negras). Historicamente, toda vez que se lia “Contrata-se recepcionista com boa aparência”, o subtexto era “Negras não precisam comparecer”. Isso só começou a mudar justamente quando o racismo virou crime.
Na matéria do JN, uma representante da escola (não a diretora, que não quis dar entrevistas) disse que houve um ruído na comunicação, e que todos os funcionários devem usar cabelo liso e uniforme. Estranho ela adotar o masculino aqui, porque duvido que a escola tenha muitos funcionários homens de cabelo comprido. E depois que ela mesma estava com o cabelo solto. Mas seu cabelo é loiro e liso, então imagino que tudo bem.
De lá pra cá, Ester foi tirada da recepção da escola e colocada pra trabalhar num arquivo, carimbando carteiras de alunos. Parece óbvio que o Anhembi Morumbi não vai despedi-la enquanto o assunto estiver na mídia.
Bom, a revolta do leitor que me escreveu nem era tanto com o caso em si, mas com a coluna de André Forastieri para o R7. André gosta de polemizar. Eu não costumo lê-lo, mas já fiquei indignada uma vez, quando ele disse que não via problema algum em comer carne de cachorro. O título de seu texto sobre o caso de Ester já resume o que ele pensa: “Nem injustiça, nem racismo: o mundo é assim”.
André diz, que, “de longe”, não vê racismo na atitude da escola. E dá alguns exemplos de como funcionários devem se vestir de acordo com o lugar que trabalham. E ter o tipo físico adequado também (“gordeta” não pode trabalhar em academia, segundo ele). Então não é racismo, determina André, porque é assim que as coisas funcionam, e Ester, como estagiária, está aprendendo uma grande lição ao ser informada disso (porque, suponho, ela não sabia que o mundo era racista). Pergunta e responde André: “É chato para Ester? Certamente. É raro? Claro que não. [O que é raro? Não fica claro!]. É injusto? Bem, quem trabalha representa a empresa onde trabalha”.
Por incrível que pareça, para André, a exigência de usar terno e gravata para advogados se equivale a ter que alisar o cabelo se a funcinonária (qualquer uma, em qualquer empresa?) for negra. Dá na mesma trocar de roupa, e empestar os cachos de tóxicos para se enquadrar a um padrão de beleza que prega que só cabelo liso é bonito? Tudo igual.
Vou ser radical aqui: falar mal do cabelo de um negro (e, mais ainda, de uma negra, já que no nosso mundo “boa aparência” importa muito mais para mulheres que para homens, já que mulheres são avaliadas quase que exclusivamente pela aparência) é racismo. Sempre. Porque ter cabelo crespo é um dos traços principais (junto com quadris grandes pras negras) dos negros. Aliás, poucas vezes esse tipo de cabelo é chamado de cabelo crespo. Temos outro nome pra isso: cabelo ruim. Como pergunta este excente curta, “O que o cabelo fez pra ser chamado de ruim?”. Pois é, quem determina que o cabelo de toda uma raça é ruim? Baseado em quais critérios? E temos que aceitar essa avaliação baseado no “o mundo é assim, é assim que as coisas são”?
Se aceitássemos que o mundo funciona assim, fazer o quê?, não teríamos tido mudança alguma. Imagina as mulheres do século 19 não se rebeleram contra o fato de não poderem votar porque “é assim que as coisas são”. Imagina os gays acharem que tudo bem homossexualidade ser vista como doença tratável à base de eletrochoques porque “é assim que as coisas são”. Imagina os negros e demais abolicionistas na época da escravidão, negando que o mundo seja injusto ou que haja racismo porque, afinal, “é assim que as coisas são”. É chato para escravos negros? Certamente. É raro? Claro que não. É injusto? Bem, quem é escravo representa o dono pra quem trabalha.
Felizmente, não é André quem tem que decidir se a escola foi racista. Quem decide que foi vítima de racismo é quem sofre a discriminação. Não ele ou eu, que somos brancos. Quer dizer, quem denuncia o crime (e, pra denunciá-lo, é preciso que quem o sofreu considere que houve um) é a vítima. Depois quem decide se de fato houve crime é um sistema cheio de homens brancos e héteros, totalmente neutros e imparciais, lógico.
Como polemista, André se considera um questionador. Uma dica: quem questiona nunca deveria dizer em tom conformista que “o mundo é assim”. Só os conservadores se conformam em viver num mundo preconceituoso. O mundo não tem que ser assim. E, se depender de gente que questiona e luta, não vai ser.

P.S.: E por falar em luta: terça-feira, dia 13, às 14 horas, haverá um protesto em frente ao colégio. Chama-se "Solte o cabelo! Prendam os racistas!". Participe, mesmo que você seja branc@.




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