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A ÁRDUA TAREFA DE NÃO SER ESTUPRADA
Outro dia vi um reaça criticando o feminismo na base do "Se feministas realmente se importassem com as mulheres, fariam campanha para que todas andassem armadas". Já ouvi isso antes, várias vezes, aliás. Reaças têm fetiche por armas de fogo. Reaças pensam que armas de fogo reduzem a criminalidade (se isso fosse verdade, os EUA, o país mais armado do mundo, com impressionantes 90 de cada 100 cidadãos tendo uma arma, não seria também o país com o maior número de presos). E reaças parecem ignorar totalmente as estatísticas de que mais de 70% dos estupros são cometidos por conhecidos da vítima (namorado, parente, mui amigo, chefe etc). Aquele clichê do estuprador como um homem mascarado numa rua deserta à noite -- contra quem, talvez, andar armada poderia funcionar, se ele também não estivesse armado, ou se de repente ele não conseguisse tirar a sua arma e te matar) é isso mesmo, um clichê. Deixe-me contar uma historinha real. Ano passado, uma analista política e sobrevivente de estupro, Zerlina Maxwell, foi a um programa de direita da Fox (de Sean Hannity).Hannity, como um bom reaça, quer que as mulheres usem armas de fogo para se proteger contra estupros. Ela rebateu: “Acho que deveríamos dizer aos homens para não estuprar. Você está falando de estupro como se fosse o ato de um criminoso sem rosto e sem nome, quando muitas vezes é de alguém que você conhece e confia. Se você treinar homens a não crescerem virando estupradores, você previne estupros”. Como resposta, ela recebeu o tratamento dedicado às mulheres (aquele que os caras que negam a cultura de estupro fingem não ver): um monte de ameaças de estupro. Tipo esta: “Você precisa ser estuprada por um grupo para ter alguma razão, sua vadia estúpida”. Porque, né, o que muitos caras adoram fazer ao ouvir uma mulher dizendo "Temos que ensinar os homens (que são, afinal, os responsáveis por 98% dos estupros) a não estuprar"? Dizer que ela merece ser estuprada, lógico. Faz todo o sentido. Há poucos dias, foi divulgada uma nova invenção: um esmalte que muda de cor ao detectar as chamadas "drogas de estupro" (não custa lembra que o álcool é também uma droga de estupro, e muito eficaz). |
Já havia outro produto parecido |
No início, pelo pouco que acompanhei, a recepção foi positiva. Mas rapidamente várias feministas e ativistas pelo fim do estupro se posicionaram contra. Uma delas disse: "O problema não é se uma mulher sabia que havia drogas na sua bebida, mas o fato de alguém ter posto drogas na sua bebida". Este site pergunta: a invenção é anti-estupro ou anti-mulher? E começa assim (minha tradução): "Estude defesa pessoal. Use calcinha anti-estupro. Não ande sozinha. Fique nas áreas iluminadas. Não vista uma saia ou vestido. Não beba. Podemos acrescentar agora 'pinte suas unhas' à lista dos conselhos recentes dados às mulheres sobre a prevenção ao estupro. A mensagem, em todos os casos, é que as mulheres são responsáveis pela sua própria segurança". É verdade. Imagine que você saia, vá a uma festa, alguém põe uma droga na sua bebida quando você está desatenta, e você acaba sendo estuprada. Agora quem gosta de culpar a vítima vai não apenas perguntar "Por que você saiu? Por que você bebeu? Por que você foi desatenta?", como também: "Por que você não estava usando
o esmalte anti-estupro?" |
Esmalte para prevenir estupro parece uma ótima ideia, mas não tenho certeza se vc vai conseguir que homens o usem |
É parecido a um dos problemas dos vagões de trem e metrô exclusivos para mulheres (pra mim, o maior problema é mesmo a segregação -- eu não quero um mundo separado entre mulheres e homens), para assim podermos escapar de "encoxadores
": se uma mulher usar um vagão comum, misto, e não aquele exclusivo para mulheres, e for bolinada no transporte, alguém pode perguntar: "Por que você estava usando o vagão misto? Você estava pedindo!" Exigir que uma mulher use esmalte anti-estupro, ou ande em vagões exclusivos, ou porte uma arma, é fugir do problema. O problema não é a mulher que é estuprada, é quem estupra. E aí reaças partem de um pressuposto bem distante do da maior parte das feministas, porque acham que quem estupra são uns poucos monstros, e que bastaria matar todos para acabar com isso. Só que não são uns poucos homens que estupram, são muitos. E eles não são monstros, são homens comuns. Não são extraterrestres, são pessoas nascidas e criadas na mesma cultura que a gente. Pense: o tipo de cara que põe droga na bebida de uma garota para depois poder estuprá-la provavelmente não é o mesmo tipo de cara que sai procurando mulheres sozinhas na rua à noite. O tipo mascarado não é o mesmo cara que encoxa mulheres no transporte público. O colega que assedia e finalmente estupra não é o tipo mascarado. O mascu sancto que escreve atrocidades como esta abaixo certamente não tem qualquer vida social, e, no entanto, também pensa como um tipo de estuprador:
Há também um outro problema, de ordem ética, com a invenção -- que, deve ser dito, foi de quatro alunos homens de uma universidade americana. É ético querer lucrar com uma praga social como o estupro? O que eu considero mais problemático de tudo é que a invenção seja vista como empoderadora pras mulheres. Ahn, empoderador mesmo seria se uma garota pudesse fazer tudo que um garoto faz (sair pra se divertir, por exemplo) sem correr o risco de ser estuprada. |
Calcinha anti-estupro |
Eu pessoalmente não vejo problema se uma mulher, individualmente, fizer uso do esmalte. Assim como acho ótimo que meninas façam artes marciais e, sempre que possível, reajam (não a um assalto, mas a um estupro). Assim como já discutimos andar com armas brancas. Mas, como movimento, o feminismo deve sempre apontar que a responsabilidade em evitar estupros não é das mulheres. É de quem estupra. Spray de pimenta, esmalte que detecta drogas, calcinhas anti-estupro, apitos -- tudo isso é paliativo. Pode livrar uma mulher de um estupro, mas não acaba com a pandemia de estupros que existe no mundo. Que existam tantos conselhos e produtos ensinando as mulheres a não serem estupradas (como se isso funcionasse -- aprendemos tudo desde crianças, e mesmo assim, milhões de mulheres seguem sendo estupradas), é um dos indícios da cultura de estupro. O verdadeiro combate, o que realmente pode levar ao fim do estupro, é ensinar as pessoas a não estuprarem, ponto. Ensinar que não é não (não é joguinho), que o corpo de uma pessoa não é público, que não é a roupa de uma mulher que vai indicar se ela está ou não a fim, que ninguém é dono de alguém. A árdua tarefa de combater o estupro deve ser de toda a sociedade.
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