A BELA ADORMECIDA NÃO DORMIA
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A BELA ADORMECIDA NÃO DORMIA


Outra Fernanda que sabe tudo de francês perguntou se eu queria que ela traduzisse um artigo que uma amiga escreveu sobre Malévola e o feminismo. Eu respondi: só se for pra ontem! É um belo artigo. Muitíssima obrigada!

Mais que um remake técnico, Malévola, nova versão cinematográfica do célebre conto de Perrault, transforma a imagem arquetípica da mulher. O filme transcende as diferentes formas de feminismo para trazer uma nova e moderna resposta à questão da mulher no século XXI.
O significado dos contos de fada
Um conto não é só uma história. Um conto é isento de qualquer semelhança com o real: ele tem diabos, bruxas e sua magia, e situações malucas. E além disso, um conto é recheado de simbolismos: ele tem seu sistema ternário de cores (vermelho, branco, preto), formas (círculo), objetos (pluma, espada), cada qual utilizado com um sentido preciso. 
Um conto não é jamais visto somente por aquilo que conta, mas sobretudo pelo que significa.  Na psicologia, o conto é tratado com um arquétipo, quer dizer, um aspecto do inconsciente coletivo, uma maneira universal de compreender o mundo. Assim, mesmo se cada conto possui várias variações de detalhe –- pois na sua origem ele se transmitia oralmente, e cada contador acrescentava ou modificava certos elementos, segundo sua inspiração -– essas modificações não alteram em nada o sentido inicial e simbólico do conto. 
Para o conto da Bela Adormecida, existem pelo menos três versões diferentes, e algumas podem te surpreender (como explicarei em seguida). Mas todas se destinam ao mesmo significado, ao mesmo arquétipo.
A Bela Adormecida ou o nascimento da feminilidade
Como explica Bruno Bettelheim, na sua obra A Psicanálise dos Contos de Fada, o conto da Bela Adormecida é a alegoria da passagem de menina a mulher, com as dificuldades e sofrimentos que essa etapa apresenta. Apesar de todo amor e atenção que os pais dão à filha, eles não conseguem evitar a maldição da puberdade, que começa no sangue (as menstruações) e se prolonga no refúgio em si mesmo (o sono de cem anos). 
Para tirá-la desse estado, o príncipe deve em primeiro lugar derrubar uma floresta de espinhos, a barreira vegetal que protege sua virgindade, para finalmente beijar sua princesa e fazer dela uma mulher. Na versão mais antiga do conto, não com um beijo, mas com o nascimento do filho que ele desperta a princesa, no momento em que o filho busca os seios da mãe para mamar. 
Ao contrario das versões da Disney, o conto prossegue com as maldades da mãe do príncipe, por ser ciumenta. Para viver em paz com sua princesa o príncipe deve matar a mãe: ela terminará por ser queimada num grande caldeirão. De menina à mulher e mãe, em seguida dona de casa, a Bela Adormecia ensina às meninas o papel que elas devem seguir na sua existência. Esse conto fornece uma imagem arquetípica da mulher, uma resposta à questão: o que é ser mulher?
O filme de 1959, mesmo sem integrar o fim do conto (a morte da mãe), ainda é fiel ao arquétipo do conto. Mas o que acontece em Malévola? As "variações" dadas se parecem com as variações dos contos, sem consequência para seu significado profundo? Na realidade, as modificações dessa nova versão não são superficiais: ao contrário, elas mudam completamente o arquétipo clássico da mulher. 
O começo do problema: a inocência aliada ao crime 
O conto de Malévola começa com um casal, como na Bela Adormecida, mas esse casal é infantil: na beira da adolescência, Malévola, pertencendo ao mundo mágico, e Estevão, um humano, se encontram. Esses dois pequenos seres, que ainda não entraram no mundo dos adultos, simbolizam um destino que ainda não foi construído; eles são os arquétipos a construir. 
Mas um conto começa sempre por um desequilíbrio que forma um problema a se resolver, a finalidade da aventura dos personagens. O fim do conto deve sempre restabelecer o equilíbrio entre o princípio feminino e o masculino: um rei viúvo deve encontrar uma mulher, uma princesa solitária deve ter um bebê… Em Malévola, o desequilíbrio aparece na idade adulta dos dois personagens. Estevão, o apaixonado traidor, corta as asas da boa fada Maléfica para satisfazer seus acessos de ambição. 
Dessa maneira, e de uma forma totalmente radical em relação aos contos ancestrais, o pecado original consiste na opressão masculina sobre o princípio feminino. Para afirmar seu poder (se tornar rei), o jovem rapaz aniquila a jovem moça retirando dela o que a faz ser fada, e o que a faz ser mulher, de uma forma. Pelo ato de "cortar as asas", expressão com grande potencial figurativo, Estevão impede Maléfica de crescer normalmente e de se realizar em toda a sua feminilidade. 
A partir desse fato, o conto vai trabalhar o vocabulário simbólico da opressão masculina. Por exemplo, Malévola, na sua condição de ser mágico, é alérgica ao ferro, alegoria da crueldade e corrupção. Nessa versão do conto, o conteúdo do rito iniciático da Bela Adormecida é modificado: a passagem de menina a mulher não é mais o resultado de uma maldição que a menina deve aceitar passivamente, mas consequência de um gesto humano contra o qual, com certeza, vai ter que lutar.
O movimento de liberação do corpo
Essa versão do conto, de ser ou se tornar mulher, não se exprime na aceitação imóvel de sua condição, mas no agir, no fazer. Entre sono violado por um terceiro e a luta, há um espaço de reivindicação: o direito da mulher de dispor de seu próprio corpo. Porque é exatamente sobre isso que repousa a ambição de Malévola desde o início: se vingar da mutilação de seu corpo, tentativa criminosa de submissão. 
Para lutar, Malévola deverá se realizar na sua liberdade pela reapropriação de seu corpo. Assim, Malévola é livre para escolher não ter filhos e até dizer que ela "não gosta de crianças". Por essa palavra performativa, Malévola parece se emancipar dos clichês da mulher da Bela adormecida: não, a mulher não é uma simples procriadora potencial. Ainda mais, Malévola dispõe de seu corpo utilizando roupas e acessórios inconvenientes para uma bela princesa: couro, chifres etc. Não submissa, proprietária de seu corpo, Malévola é livre. 
E não reside aí todo o princípio do filme que faz triunfar a liberdade feminina apesar da maldição original? Malévola nasceu Malévola (ou Maléfica): mas, ela ganhará sua liberdade e se libertará de seu destino onomástico se tornando caridosa. E, diferentemente da versão original do conto, não será a terceira fada-madrinha que tentará modificar o feitiço lançado por Malévola a Aurora, mas Malévola: a encarnação do seu livre arbítrio.
Mulher versus Homem
Com plena posse de sua liberdade, Malévola assume a postura de guerreira, que lhe permitirá encarnar seu pleno poder. O poder da feminilidade, sua única potência claramente expressa nessa versão do conto. O homem, nessa história, é selvagem, desordenado ou bobo. Dessa maneira, os homens do rei não conseguem jamais ultrapassar a barreira sagrada que protege o mundo das fadas. Além do que, Malévola  é muito eficaz no combate em que suas armas são as mãos nuas, e ela enfrenta todo um exército.
Somente quando o homem inventa uma tática traiçoeira, seguindo sua natureza, é que ele consegue capturar Malévola. Mas isso porque ele não esperava pela magia das asas da heroína que retornariam para coroar o fim de sua busca. A feminilidade triunfa acima de tudo. 
Desse ponto de vista, o personagem de Filipe é particularmente interessante. Herói no conto da Bela Adormecida, libertador da feminilidade de Aurora por seu beijo, Filipe é, ao lado de Malévola, um pequeno nada sem relevo. Melhor ainda, é ele que fica no sono e inação: sutil inversão dos valores de poder. Ainda mais, ele se revela totalmente incapaz de acordar a princesa.
Um… dos feminismos
Do ponto de vista simbólico e da história, Malévola parece ser uma colcha de retalhos sincrética de diferentes formas do feminismo: o movimento de liberação das mulheres, representado pela reapropriação do corpo, mas também um feminismo radical que consiste em denunciar a opressão masculina e se inscreve numa luta de sexos, tão exigente e violenta como a luta de classes. 
Mas um outro tema, mais feminino que feminista, é abordado pelo conto: a natureza. As referências a uma terra perfeita, povoada por flores e riachos, habitada por animais maravilhosos, isolada do território bestial e cinza dos homens, próxima a um jardim do Éden, podem levar a uma reflexão ecológica, como a do filme Avatar (cuja estética sem dúvida inspirou Malévola). 
Mas no conto Malévola a natureza é sempre ligada à mulher: Malévola é guardiã e protetora, e é no meio desse mundo que Aurora obtém sua liberdade de mulher -- ela decide deixar suas mães (as fadas) porque ela aprendeu a amar o jardim maravilhoso e decide habitar nele. 
E é nesse jardim que Malévola, que não queria crianças, começa a amar sua afilhada. Esse reino preservado simboliza a mulher na sua dimensão daquela que dá a vida. Graça a ele há o retorno da ternura e o triunfo do amor materno: como uma mãe, Malévola luta ferozmente para salvar a vida de Aurora, e como uma mãe ela se sacrifica por essa causa.
Dama natureza
A natureza nesse conto não existe tão somente por ela mesma, mas para dar relevo e profundeza à moral do conto: é certo, a mulher deve lutar contra a opressão masculina, mas sua verdadeira liberdade reside na aceitação que ela fará da sua natureza de mulher. A escolha de Angelina Jolie para encarnar Malévola parece evidente: mulher fatal e mãezona, ela concentra sua imagem em vários temas abordados pelo conto.
Com a diferença da vida real, onde cada forma de feminismo pode se opor a outra (Simone de Beauvoir não seria amiga de Julia Kristeva), as diferentes teses feministas evocadas pelo conto se encontram num todo coerente. O feminismo radical é ultrapassado por uma visão naturalista, e a luta termina num equilíbrio entre homem e mulher (pois Filipe é aceito no jardim). 
Os arquétipos do feminismo evoluíram? Depois da mulher oprimida e do feminismo que recusa toda forma de feminilidade, nossa sociedade teria enfim encontrado um compromisso?




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