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A ENCENAÇÃO QUE MANTÉM A ORDEM
Espetáculo matrimonial transmitido para o mundo inteiro Ontem falei um tiquinho sobre o casamento real, mas tenho mais pra falar. Só que parece que o assunto já morreu (ainda bem!). Bom, pro meu curso de Crítica da Mídia, estamos lendo o ótimo livro da Marilena Chauí, Simulacro e Poder: Uma Análise da Mídia (2006) e lá ela cita Umberto Eco. Em Viagem na Irrealidade Cotidiana (1984), Eco distingue a paleotevê (o evento acontece independentemente de sua transmissão) da neotevê (o evento é preparado para ser transmitido). Ele compara as transmissões do casamento de Grace Kelly com o príncipe Rainier de Mônaco, em 1956, com o de Charles e Diana, em julho de 1981. Ambos tinham rituais parecidos, mas o da televisão antiga não foi pensado para ser transmitido. As câmeras tiveram de ir atrás, tentando se posicionar para encontrar os melhores ângulos. No segundo, de acordo com Eco, “estava absolutamente claro que tudo aquilo que acontecia fora ensaiado para a televisão”. Desde as cores das roupas dos noivos e convidados (tom pastel para criar um ar de primavera televisiva) e o vestido de noiva feito para ser visto de cima (onde ficariam as câmeras), até a cor do cocô dos cavalos (que tomaram pílulas especiais durante uma semana para que “seu esterco ficasse com uma cor telegênica”). Londres virou um estúdio. Para Chauí, “o espetáculo não se referia ao acontecimento e sim à encenação do acontecimento, ao seu simulacro” (17). Seria um insulto à inteligência de qualquer um perguntar com qual casamento o de William e Kate, ontem, mais se pareceu, se com o de 56 ou o de 81.Tô com a daminha no meio da foto e não abro. Isso me fez lembrar o que diz Guy Debord em A Sociedade do Espetáculo (1997). Para ele, o espetáculo é uma ferramenta de pacificação e despolitização, uma guerra permanente do ópio. Apesar do espetáculo se apresentar como instrumento de unificação, o que ele realmente faz é separar. Isso fica claro no casamento real. Por um lado, um evento desses parece que une a Inglaterra e, até certo ponto, o mundo (afinal, foi visto por 2 bilhões de pessoas de todos os cantos). Por outro, no entanto, ele deixa claras as diferenças de classe. Temos o povão e a monarquia, os à margem versus os escohidos por deus. Num artigo de Michael Bristol que li já faz algum tempo, ele descreve eventos de pompa oficial e procissões reais, em que a hierarquia é exposta de forma muito pedagógica, didática até. Uma procissão mostra às pessoas as crenças da classe dominante. O casamento real faz exatamente a mesma coisa. É um selo de “É assim que vocês devem se comportar”. Quer dizer, o que é tradição senão um atestado de que a ordem (“natural”) das coisas deve ser mantida?O bolo real teve oito andares. Nenhum deles de chocolate.Voltando a Chauí, no livro ela menciona o grande Truman Show, o Show da Vida (1998; pra mim um dos nove melhores filmes da década de 90), e eu fiquei matutando se cabe alguma comparação entre Truman e William. Desde seu nascimento, William aparece na mídia. A diferença é que ele sabe que tem câmeras apontadas pra ele, e Truman não. Todas as pessoas com quem Truman se relaciona são atores. Toda a cidade é um cenário. Sua vida é um show (onde pouco acontece) 24 horas por dia. Mas mais interessante do que pensa ou como age Truman/William é o comportamento de seu público. Truman reconforta os espectadores, que dormem com a TV ligada enquanto ele está dormindo (William lembra seus súditos que a monarquia vive e que contos de fadas podem se concretizar, desde que a plebeia venha de família milionária que já frequentava o castelo real antes do casamento).Sou a única que acha essa imagem assustadora?
O público de Truman sabe que tudo é uma farsa, mas se comporta como se aquelas vidas fossem reais. Chauí diz que o público encara a decisão real de Truman de deixar seu show como se fosse ficção: “Truman, ou o protagonista, distingue realidade e ficção, verdade e simulacro, mas o público tornou-se irremediavelmente incapaz dessas distinções” (19). Eu acho que a monarquia sabe bastante bem o que é real e o que é ficção. E sabe melhor ainda que o público adora fingir que não sabe.O casamento como espetáculo mais uma vez alcançou seus objetivos, que é promover o consumo e manter o status quo. Concordo com a Laurinha: amor mais sincero é o de Charles e Camilla.
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