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A RUA É MINHA TAMBÉM, DÁ LICENÇA?
Uma notícia bastante comentada esta semana foi a de uma estudante universitária, Yasmin, que, ao passar por um prédio entre a sua casa em Copacabana e a universidade onde estuda, cansou-se de ouvir grosserias diariamente, e decidiu reagir.
Respondeu, dizendo que não merecia aquilo, que não tinha que andar de cabeça baixa, que o homem (um porteiro) que lhe dizia essas besteiras deveria ter ética, porque ele está em seu local de trabalho. Pelo jeito, enquanto Yasmin falava, passou uma repórter do Globo, que filmou seu "dia de fúria", o que gerou uma matéria.
Assim que me enviaram a matéria no Twitter, eu aplaudi a reação da aluna. Acho que, dentro do possível, tem que reagir sim. Claro que às vezes é perigoso. Muitas vezes esses caras ficam agressivos (inclusive fisicamente) quando são confrontados. É muito comum que o "ô lá em casa, gostosa" vire "quequié, sua mocreia? Vc não tá com essa bola toda não!" ao primeiro "Palhaço!" que a moça disser. E levante a mão quem não conhece histórias do sujeito que partiu pra cima depois de uma resposta atravessada.
Já escrevi um montão sobre "cantadas" na rua, que eu prefiro chamar de grosserias e assédio. Pessoalmente, eu vejo diferença entre "Que lindos olhos!" e "Quero mamar nesses peitos", e acho que só o segundo caso deveria receber um palavrão em troca. Mas entendo as mulheres que simplesmente não querem ser interpeladas por um estranho na rua. Até porque é cumulativo. De repente o "Que lindos olhos!" veio depois de cinco "Quero mamar nesses peitos" nos últimos dez minutos, e a pessoa já não aguenta mais.
Ou a pessoa já ouve essas grosserias desde que era criança. A própria Yasmin lembrou pra reportagem que, quando tinha doze anos, um cara numa bicicleta apertou seus seios -- quer dizer, os seios que uma menina púbere tem. Não é nada raro que a grosseria verbal venha acompanhada de abuso físico, num ato que podemos chamar de terrorismo sexual.
Por que os caras fazem isso? Depende. Se estão em grupo, é pra competir (ver quem diz a grosseria mais abjeta), ao mesmo tempo que se entrosam com a turma e "provam" que são másculos. A masculinidade deve ser mesmo um conceito muito frágil, já que homens héteros têm que provar que são "homens com H" o tempo todo. Os homens héteros que desistiram de provar sua masculinidade podem atestar como essa eterna performance é exaustiva. É um dos pedágios, dos impostos, que os homens têm que pagar pelos seus privilégios. Se o cara está sozinho, evidentemente que ele não "canta" a mulher com a intenção de levá-la pra cama. Ele sabe que são ínfimas as chances de uma moça aceitar um convite sexual depois de um "te chupo todinha" (e não é só porque as mulheres sabem que vivem numa sociedade machista que as condenará por sexo casual, mas também porque, tipo, pode ser perigoso pra uma mulher sair com um total desconhecido?). Ele fala com a mulher na rua porque ele está numa posição de poder, e quer mostrar quem é quem manda ali, naquele espaço público que pra ele é tão dele que é só dele. Ao mesmo tempo, ele vê um espaço privado -- o corpo de uma mulher -- como se fosse público. Se a mulher estivesse acompanhada, ele não falaria nada. Mas, se ela tá sem um homem do lado, não é de ninguém. É do macho que chegar primeiro.
O jeito desse cara mostrar que está numa situação de poder é iniciando uma interação, e avaliando. O porteiro que "cantava" Yasmin todo dia certamente dizia grosserias pra várias outras mulheres que passavam em frente do "seu" prédio. Não é pessoal. O "tesão" não era dirigido apenas a Yasmin, mas a todas as mulheres. E significava muito menos um "quero transar com você" do que um "tenho poder pra te julgar" (assim como estupro tem muito a mais a ver com poder que com sexo).
Vale lembrar que esse rapaz talvez não fizesse apenas avaliações "elogiosas" às mulheres que passavam. No seu poder avaliativo, ele provavelmente gritava "Sai pra lá, baranga!" ou "Sua bunda tá caída" pra quem não lhe apetecesse. Todas as mulheres que passavam diante de "seu" prédio passavam também pelo seu crivo. Querendo ou não. Pode apostar que a maioria não quer.
Mas toda vez que escrevo sobre isso, aparecem uns machistinhas pra jurar que quem tem o poder, neste caso, são as mulheres. Elas têm o único poder que as mulheres podem ter -- o de seduzi-los, encantá-los, viver em função dele, enfeitar o espaço público. Não ocupar esse espaço, só decorá-lo de leve.
Outra coisa que os machistas falam é que as mulheres só se ofendem (ué, nos ofendemos? Pensei que a gente adorava isso, que servia pra inflar nosso ego! Decidam-se, seus contraditórios ambulantes: a gente gosta ou não gosta? Se ofende ou saímos plainando pelo ar diante da aprovação masculina?) porque quem as canta é um pedreiro, um porteiro, porque se fosse um executivo pilotando uma Mercedes, aí... (preencha com a fantasia erótica implantada pela indústria pornô na sua cabeça).
Esse tipo de indignação revela uma enorme dose de rancor com o fato de que mulheres -- como ousam? -- podem escolher. Assim como os homens, ué. Ninguém é obrigadx a se interessar por quem não quiser.
Mas por que Yasmin respondeu logo ao porteiro, e não ao ricaço que é a cara do Brad Pitt e que fica lá estacionado na sua Ferrari na esquina da Rua Raul Pompeia, no Cobacabana, só esperando Yasmin passar pra poder cantá-la?
Ahn, porque esse ricaço que é a cara do Brad Pitt não existe? Porque quem assedia Yasmin, e tantas outras mulheres (99,6% das brasileiras responderam que já foram assediadas na rua -- é muito mais fácil encontrar alguma que não tenha sido), é quem está na rua, muitas vezes trabalhando. Pedreiros são hors concours.
É preciso ser muito machista pra pensar que uma mulher assediada por um grupo de homens em coro fica chateada e nervosa porque a classe sócio-econômica de quem a está assediando não lhe agrada. Ela fica nervosa com o assédio em si, venha de quem vier. Você realmente acha que se o cara que apertou os seios de Yasmin aos doze anos tivesse descido de um carrão, e não de uma bicicleta, o nojo e susto dela seria menor?
Vale lembrar também que quem é assediada é a mulher que está na rua. Ou seja, se Yasmin fosse de carro pra faculdade, em vez de andar, suas chances de ouvir "quero tomar sua menstruação de colherzinha" e "delícia" cairiam consideravelmente. Quem sofre mais assédio na rua é quem está na rua -- empregadas domésticas, babás, meninas de dez anos que vão à padaria comprar pão, alunas de escolas e universidades, mulheres em geral que dependem do transporte coletivo pra se locomover. Por isso que cada "tesão" é um lembrete masculino de que a rua é dele, não dela, e que ela deveria estar em casa, onde é o seu lugar, ou no mínimo acompanhada de um macho que a proteja (marido, pai, irmão).
E cada reação feminina a esse "elogio" é um "a rua é minha também, otário", um "chegamos ao século 21, você não reparou?". Por isso é importante reagir. Não foram as feministas que inventaram essa dinâmica social. Não foram nem as feministas que inventaram a reação. Mas a reação veio. Pra ficar.
P.S.: Eu li o artigo muito equivocado da Juliana, que fez da reação de Yasmin uma luta de classes, uma luta racial. Juliana infelizmente faz coro aos machistas que afirmam que, se o sujeito não fosse um porteiro negro, Yasmin -- e tantas outras mulheres -- adorariam o assédio. Juliana, branca e de classe média, na sua vontade de criticar o "feminismo branco de classe média", vê cantadas de rua como algo que homens negros e pobres fazem a mulheres brancas e ricas.
Mas é óbvio que homens negros e pobres também assediam mulheres negras pobres e ricas, e que homens brancos, pobres e ricos, assediam mulheres (cis e trans) de todas as cores e classes sociais. Quer dizer, não é porque o assédio venha de alguém oprimido que ele se torna menos condenável. Yasmin fez bem em ameaçar chamar a síndica. O porteiro já estaria errado em cantar mulheres na rua quando não estivesse trabalhando. Quando está trabalhando, então, é inadmissível, porque ele está associado ao edifício para o qual trabalha.
Uns anos atrás, um leitor (hoje professor e engenheiro, mas que foi pedreiro durante boa parte da vida) recomendou que as mulheres parassem nas obras de construção que as assediam quando passam e exigissem falar com o encarregado, e prestassem queixa. Que, se essa obra tiver responsabilidade social, ela vai proporcionar a todos seus empregados um curso de questões de gênero, para que eles aprendam por que esse comportamento não é mais aceitável. Isso vale também pra mulher que passe por um escritório envidraçado que seja filial da Bolsa de Valores de Wall Street e os vários playboys engravatados lá dentro começarem a gritar grosserias pra ela.
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